Levei as minhas filhas ao teatro. Fomos os três assistir
à estreia de As Aventuras de Auren, o pequeno serial killer, de Joseph Danan,
pelo Teatro da Rainha. Por cá, a peça gerou ligeira polémica. Como sempre se
passa por cá, alguns puristas foram observando pela calada a inadequação de uma
peça infantil com um jovem serial killer como personagem central. Esta gente
não deve saber o que os filhos lêem, se lerem, ou vêem na televisão, se passarem
tempo a ver televisão, ou espreitam na Internet, quase de certeza que ocupam
muito tempo na Internet, ou jogam com a PlayStation. Mas nem se exige tão
custosa atenção. Basta pensarmos no nosso próprio imaginário quando éramos
crianças, habitado por monstros e feras terríveis, vindos da selva ou com
poderes sobre-humanos, basta pensarmos, enfim, nos cowboys e nos índios, que não tinham propriamente relações amistosas. E
histórias para a infância com jovenzinhos perturbados é o que não falta. Ainda
bem.
O que falta, por vezes, é descer à terra e abandonar a máscara hipócrita
com que tentamos moralizar o mundo à nossa volta. Lembram-se do Dragon Ball? Eu
lembro. E recordo até com certo pejo as inúmeras discussões num país deveras
complacente para com mentecaptos sobre o quão prejudicial seria a exibição
desse desenho animado, dinamizador de todos os vícios e ameaçador dos bons
hábitos e dos bons costumes. Mais ou menos pela mesma altura ficámos a saber
quais eram os bons costumes com a implosão do escândalo Casa Pia. Enfim, isto
tudo para dizer que nada existe em As Aventuras de Auren, o pequeno serial killer
que seja desaconselhável. Pelo contrário.
A Beatriz, de 9 anos, foi fazendo
comentários do princípio ao fim com um entusiasmo que raras vezes lhe
reconheço. A Matilde, a passos largos para os 13 anos, riu, deslumbrou-se, entregou-se
a cogitações sobre as fronteiras que separam a realidade da ficção, a verdade
dos factos, por assim dizer, do sonho. Como já sabe o significado da palavra
alegoria, e não se amedronta com metáforas, percebeu existir no drama uma
dimensão fantasiosa fortemente simbólica. Porque, na realidade, este jovem
serial killer é apenas em estado latente o que potencia a marginalização, a
exclusão social, os comportamentos desviantes de um adolescente.
Cenário
deslumbrante, repleto de pormenores engenhosos que nos transportam para um
mundo de fantasia, com figurinos burtonianos a transfigurar os pesadelos de
Auren numa exótica fábula acerca dos ímpetos humanos e como o instinto animal
deforma as atitudes e os comportamentos. À luz do pormenor, podíamos até acusar
a Joseph Danan uma excessiva moralização do seu pequeno herói. Mais do que ser
salvo pela poesia, o que revela, por parte do autor, uma fé no poder
transformador das artes que nos parece hoje sempre muito estranha, salvo raríssimas
excepções, Auren tem todos os ingredientes na sua situação particular para, por
exemplo, vir a alistar-se num qualquer movimento jihadista. Ora, tais ambientes
conferem à peça uma pertinência inesperada.
No decorrer da acção deparamos com
as múltiplas acendalhas que propulsionam a deflagração de um incêndio
emocional. Escapar ao ódio, nestes casos, é que é do domínio da ficção. Na realidade o ódio surge muito mais provável do que o amor em contextos tão
desfavoráveis como são os da personagem em foco. Portanto, não se amedrontem os
castos com aquilo que se encena nos palcos de uma sala de espectáculos. Amedrontem-se
antes com o palco da realidade. Se o primeiro puder despertar mentes
adormecidas para o segundo, o excelente trabalho dos actores e o
esforço de toda a companhia foram bem-sucedidos.
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