quinta-feira, 3 de março de 2016

AS AVENTURAS DE AUREN


   Levei as minhas filhas ao teatro. Fomos os três assistir à estreia de As Aventuras de Auren, o pequeno serial killer, de Joseph Danan, pelo Teatro da Rainha. Por cá, a peça gerou ligeira polémica. Como sempre se passa por cá, alguns puristas foram observando pela calada a inadequação de uma peça infantil com um jovem serial killer como personagem central. Esta gente não deve saber o que os filhos lêem, se lerem, ou vêem na televisão, se passarem tempo a ver televisão, ou espreitam na Internet, quase de certeza que ocupam muito tempo na Internet, ou jogam com a PlayStation. Mas nem se exige tão custosa atenção. Basta pensarmos no nosso próprio imaginário quando éramos crianças, habitado por monstros e feras terríveis, vindos da selva ou com poderes sobre-humanos, basta pensarmos, enfim, nos cowboys e nos índios, que não tinham propriamente relações amistosas. E histórias para a infância com jovenzinhos perturbados é o que não falta. Ainda bem. 
  O que falta, por vezes, é descer à terra e abandonar a máscara hipócrita com que tentamos moralizar o mundo à nossa volta. Lembram-se do Dragon Ball? Eu lembro. E recordo até com certo pejo as inúmeras discussões num país deveras complacente para com mentecaptos sobre o quão prejudicial seria a exibição desse desenho animado, dinamizador de todos os vícios e ameaçador dos bons hábitos e dos bons costumes. Mais ou menos pela mesma altura ficámos a saber quais eram os bons costumes com a implosão do escândalo Casa Pia. Enfim, isto tudo para dizer que nada existe em As Aventuras de Auren, o pequeno serial killer que seja desaconselhável. Pelo contrário. 
   A Beatriz, de 9 anos, foi fazendo comentários do princípio ao fim com um entusiasmo que raras vezes lhe reconheço. A Matilde, a passos largos para os 13 anos, riu, deslumbrou-se, entregou-se a cogitações sobre as fronteiras que separam a realidade da ficção, a verdade dos factos, por assim dizer, do sonho. Como já sabe o significado da palavra alegoria, e não se amedronta com metáforas, percebeu existir no drama uma dimensão fantasiosa fortemente simbólica. Porque, na realidade, este jovem serial killer é apenas em estado latente o que potencia a marginalização, a exclusão social, os comportamentos desviantes de um adolescente. 
   Cenário deslumbrante, repleto de pormenores engenhosos que nos transportam para um mundo de fantasia, com figurinos burtonianos a transfigurar os pesadelos de Auren numa exótica fábula acerca dos ímpetos humanos e como o instinto animal deforma as atitudes e os comportamentos. À luz do pormenor, podíamos até acusar a Joseph Danan uma excessiva moralização do seu pequeno herói. Mais do que ser salvo pela poesia, o que revela, por parte do autor, uma fé no poder transformador das artes que nos parece hoje sempre muito estranha, salvo raríssimas excepções, Auren tem todos os ingredientes na sua situação particular para, por exemplo, vir a alistar-se num qualquer movimento jihadista. Ora, tais ambientes conferem à peça uma pertinência inesperada. 
   No decorrer da acção deparamos com as múltiplas acendalhas que propulsionam a deflagração de um incêndio emocional. Escapar ao ódio, nestes casos, é que é do domínio da ficção. Na realidade o ódio surge muito mais provável do que o amor em contextos tão desfavoráveis como são os da personagem em foco. Portanto, não se amedrontem os castos com aquilo que se encena nos palcos de uma sala de espectáculos. Amedrontem-se antes com o palco da realidade. Se o primeiro puder despertar mentes adormecidas para o segundo, o excelente trabalho dos actores e o esforço de toda a companhia foram bem-sucedidos. 

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