quarta-feira, 2 de março de 2016

[xácara do nunca nascido]


i.
não vim ao mundo senão para morrer

uma criança nasce nas vizinhanças da morte
absoluta e cadáver
os pulmões sufocando invisíveis
cadáver naufragando luz
e as sombras corroendo o universo inteiro

a tarde doía Deus
quando o ferro me cortou do paraíso
áspide e grego em sol contrário

deitaram-me sem estrelas num caixão
independente de sílabas gritadas
(falava o anterior e era um grito
e porque era um grito me chorava)

deram-me um nome que nunca regressei
pedras silábicas no mundo
os olhos ardiam por se ver o nada

ii.
absoluta e cadáver a criança caía
doíam Deus as tardes
quando trepava o visível de mãos cortando
as árvores barcos de sentido

se era para morrer que valia um dia

porque puseram desertos ao alcance das mãos
e colaram asas estátuas ao desejo

atravessava o nada e ninguém me vivia

iii.
e depois enganaram-me o amor

e ninguém me disse que o amor
era o sono da morte

e eu subia corpos como anunciações
sangue e sangue com a boca
colada ao invisível todo e
a morte bebia os astros e os caminhos
interestelares a distância dos braços

a terra a escavar a morte
enquanto se rasgam dois corpos
Deus doía tarde
quando absoluta uma criança morria

iv.
deram-me um espelho onde me queimei
integral e semente

atravessava vultos corredores do tempo
mas só a sede me vivia

a criança que corre pelo outono
só deseja a morte
gosto de areia é a memória
vai cegando de coisas irreais
famílias de divisas actos de passagem

um rosto devorado pelas invasões
com a sede a diluir-lhe o corpo
cadáver absoluto nas vizinhanças da
dor que Deus doía

v.
para uma criança morrer
absoluta e cadáver
dão-lhe o inferno para crescer

chamam destino ao que a morte cria
e noite à verdade dos dias
tiram retratos que a morte desfoca
e permitem que se passe entre os mortos
como se aqui fosse o lugar

sei apenas hoje e eu
que a dor Deus tarde
é o único chegar


Pedro Sena-Lino (n. 1977), in Deste lado da morte ninguém responde (2005). «A morte é o sujeito e o interlocutor destes versos, o 'eu' e o 'tu'. Transmigrados, em intersecção, indistinguindo-se. Mais do que uma poesia que parte do ponto de vista do sujeito, ou do objecto, esta é uma poesia de fusão. Deus vive aí também, nesse sopro de onde se evola cada palavra que dela nasce, ou, por vezes, de um sujeito poético, variável, em seu nome. Se lermos ao acaso um poema é indecifrável quem diz 'eu'. Ela é interpelada por esse mesmo sujeito ou pela absoluta criança-cadáver. // Poder-se-ia pensar que estávamos perante um universo mórbido ou macabro. Pelo contrário. Este fio de dor escreve-se em poemas e versos, intensivos, elípticos, de extrema elegância e beleza emocional, resguardando-se na invenção sintáctica. Um universo quase mais descritivo do que confessional, numa discreta distância» (Maria da Conceição Caleiro, Público, 16 de Abril de 2005). 

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