quinta-feira, 31 de março de 2016

O DIA & A NOITE NÃO PODEM VIVER JUNTOS



A editora Debout Sur l’Oeuf (DSO) publicou recentemente um pequeno volume de “poemas de índios americanos numa recreação de Vasco Gato” (sic), pretendendo talvez aqui o termo recreação arrogar uma espécie de divertimento que afasta estes exercícios de outros levados a cabo sobre as eventuais origens de uma literatura índia norte-americana. Menos recreativos, porventura mais do domínio da recriação, foram os poemas mudados para português por Herberto Helder em livros tais como O Bebedor Nocturno ou As Magias. Neles encontramos enigmas maias e astecas, poemas esquimós, poemas dos peles-vermelhas, entre outras incursões proveitosas pela arqueologia de vozes ancestrais que nada têm que ver com as concepções ocidentais de literatura. É no volume As Magias que podemos vislumbrar aquele que é, talvez, o mais fiel exemplo de uma riqueza oral que a linguagem escrita procurou preservar com maior ou menor sucesso:

(Índios Comanches, EUA)

Djá i dju nibá u
i dju nibá i dju nibá u
djá i dju nibá i ná ê nê ná
i djá i naí ni ná
i dju nibá u
i dju nibá i dju nibá u
djá i dju nibá i djá ê nê ná

Refira-se, en passant, que são várias as teorias existentes sobre a intraduzibilidade de alguns cânticos ameríndios, cujo propósito parece estar mais próximo do que conhecemos por mantras do que de uma expressão verbal de sentimentos ou de realidades mundanas. A relevância desses sons é a de uma vibração semelhante ao rufar dos tambores, símbolo de unidade do homem com os tempos e os ritmos da natureza. Estas culturas nativas privilegiavam, também por isso, a tradição oral, fazendo passar de geração em geração várias narrativas morais que um processo de aculturação violentíssimo obrigou a fixar sob a forma escrita. Porém, antes da poesia, foi a autobiografia o que mais interessou aos indígenas norte-americanos, por nela encontrarem um testemunho vivo e eficaz, ao serviço das gerações vindouras, sobre as privações que passaram, as lutas que travaram e os abusos que sofreram. Devemos ao mestiço William Apess o primeiro desses testemunhos, intitulado A Son of the Forest (1831). Por sua vez, Wynema, a Child of the Forest (1891), de Sophia Alice Callahan, é hoje considerado o primeiro romance escrito por alguém com sangue índio. Estas obras foram determinantes para fomentar o interesse pela cultura ameríndia, mas são já produto de uma mestiçagem onde os valores literários ocidentais foram assimilados e reproduzidos. 
Quanto à poesia, ela surge invariavelmente envolta no mistério de um modelo que procura preservar certo conteúdo espiritual sem adulterar a energia e os ritmos de idiomas desconhecidos. Restam versões de versões de versões de versões cuja origem é quase sempre a língua inglesa. Infelizmente, no volume publicado pela DSO, com o título O dia e a noite não podem viver juntos (Janeiro de 2016), nada nos informa acerca da proveniência dos textos. É uma pena que assim seja, sobretudo quando o próprio texto que oferece o título à colectânea não é inédito entre nós. Trata-se não de um poema, mas de um discurso, proferido em 1854, pelo índio Seattle, Chefe da tribo Suquamish, aquando de uma proposta do governo americano para compra de terras em troca de protecção numa reserva. O discurso é famosíssimo.  Dele se conhecem, publicadas por cá, pelo menos duas versões anteriores: A Noite do Índio, pela Casa Do Sul Editora, com tradução e apresentação de Joaquim Palma, 1.ª edição, Outubro de 1999, e uma outra, menos rigorosa, incluída em A Alma do Índio, Padrões Culturais Editora, sem referência ao tradutor, 1.ª edição, Julho de 2008. 
Aos poemas que compõem O dia e a noite não podem viver juntos Vasco Gato juntou apenas uma indicação sobre o autor, quando é conhecido, ou a tribo de onde provêm as palavras. Pungentes, a título de exemplo, as palavras de Tom Torlino, um conhecido Navajo de quem são famosos os retratos antes e depois de ter sido admitido numa escola cujo objectivo era erradicar qualquer indício de identidade índia nos povos nativos:

DEVO PORTANTO DIZER A VERDADE

Sinto-me envergonhado perante a terra:
Sinto-me envergonhado perante os céus:
Sinto-me envergonhado perante a madrugada:
Sinto-me envergonhado perante o crepúsculo:
Sinto-me envergonhado perante o céu azul:
Sinto-me envergonhado perante a treva:
Sinto-me envergonhado perante o sol.
Sinto-me envergonhado perante aquilo que trago dentro de mim e que fala comigo.
Algumas destas coisas não param de olhar para mim.
Nunca estou longe da vista.
Devo portanto dizer a verdade.
É por isso que digo sempre a verdade.
Cinjo a minha palavra com força junto ao peito.

Torlino
[Navajo]

Resta saber a qual retrato de Torlino devemos atribuir estas palavras, se ao retrato em que se encontra com o cabelo comprido e brincos nas orelhas ou à versão polida, já sem brincos, de cabelo cortado, de fato e gravata vestido. Igualmente valiosas são as palavras atribuídas a Nalungiaq e Samik, membros Inuítes (vulgarmente tratados por Esquimós), onde dão conta tanto de uma mitologia muito própria como de princípios éticos básicos face a situações de extrema privação. Deixadas na penumbra, as canções de guerra dos Cherokee ou as orações aos guerreiros dos Asiniibwaan, disponíveis em diversas antologias, são entre o que conhecemos da poesia ameríndia alguns dos trechos mais eloquentes. Quer pelo contexto de guerra, quer pelos estímulos que procuravam produzir, esses poemas deveriam ter merecido uma outra atenção. Arrisco duas versões minhas, a partir das reproduções antologiadas em American War Poetry (Columbia University Press, 2006), volume organizado por Lorrie Goldensohn:

“CANÇÃO DE GUERRA”
A partir de Maurice Boyd, Vozes Kiowa

Corro até ao ribeiro para lavar o cabelo.
Pinto o rosto com as cores do crepúsculo.
Minha tia escolhe-me um xaile azul claro como o céu.
Mas eis que escutamos o choro que significa
treva para todo o meu povo.

Corro de regresso à minha tenda.
Limpo todas as pinturas
com as minhas lágrimas.

*

“ÚLTIMA CANÇÃO DE TOURO SENTADO” (TETON SIOUX)
A partir de Frances Densmore. Touro Sentado cantou
esta sua última canção depois de se render às autoridades
Norte-Americanas, pouco tempo passado sobre o massacre de Custer.

Um guerreiro
Eu fui.
Agora
Tudo acabou.
Um tempo difícil
Eu tenho.

2 comentários:

ZMB disse...

não sei se conhece:
https://www.youtube.com/watch?v=Uondygrl04w

hmbf disse...

:-) Conheço bem. Tenho em vinil. :-)