A confiar no que foi possível apurar através de
informação disponível on-line, Eduardo Quina (n. ?) estreou-se com Sombras
Mortas Entre os Dedos (Apuro Edições, Dezembro de 2015). O volume intitulado
Corpo: Labirintos. (Editora Licorne, s/d) reúne poemas escritos entre 2009 e
2012, supondo-se, no entanto, que a sua publicação tenha sido posterior.
Independentemente da ordem cronológica, aquele que aqui tomaremos como livro de
estreia é, sem dúvida, o mais desequilibrado. Denota os defeitos naturais de uma
estreia, nomeadamente uma clara indecisão quanto ao lugar de uma linguagem
ainda por definir. Trata-se de uma sequência de 41 textos, por vezes precedidos
de um título, de uma epígrafe ou de uma dedicatória, marcados pela questão da
perda, da morte, do desaparecimento. Os espaços geográficos aludidos, sejam
eles «o jardim da vila» (p. 10), a «aldeia da minha infância» (p. 40) ou mesmo
a cidade onde o presente se gasta em solitárias incursões pela paisagem,
enviam-nos invariavelmente para lugares de memória onde fica evidente uma
especial atenção à degenerescência do corpo físico e, por consequência, de uma
espiritualidade inquieta, sombria, desassossegada. O problema da morte é,
então, um desafio que instiga reflexões lacónicas sobre o sentido da vida e a utilidade
da escrita, por entre breves apontamentos intimistas ou de índole supostamente
biográfica que dão igualmente lugar a anotações quotidianas bem esboçadas: «este
espaço sem gente é hoje de esquecimento. / no limite da tarde chega um grupo /
de jovens da terceira idade / carregados com todas as suas mágoas. / estão
vivos e constroem o que resta / da tarde numa conversa trémula. / de gestos,
cansados, expressam as / estórias da sua solidão. é a manifestação / possível e
sibilante de um outono de horas / certas. corrigem vontades e entretêm a /
mente nas sombras do dominó» (p. 46). Em alguns poemas, os versos estendem-se
no espaço da página e a prosa impõe-se como a forma mais adequada a uma
respiração cansada. Pressentem-se ecos da poesia de Herberto Helder mesmo
quando não são declarados, perdendo-se alguns poemas em arrebatamentos
geracionais — «sofres a pertença / a uma geração de merda» (p. 25) ou «e
preenchias assim o vazio / neste devir permanente entre tascas» (p. 26) —
típicos de alguma poesia portuguesa contemporânea mais empenhada no sacrifício
de uma tradição lírica devedora das tempestades emotivas herdadas do
romantismo. Com menos concessões ao ambiente geral e à situação poética
vigente,
Corpo: Labirintos. desenvolve em três sequências bem arquitectadas uma
reflexão poética sobre o corpo enquanto lugar primeiro e último da existência,
não recusando considerações de carácter teosófico deveras pertinentes num
contexto onde a ideia de Deus ou as noções de sagrado e de divino são
inseparáveis da própria assumpção que possamos fazer do corpo criador. Assim
sendo, a primeira sequência foca-se no problema do corpo gerador e da sua
relação com o gerado. Há como que um cordão umbilical de palavras a unir ambos
através da figura da mãe e do filho que a convoca, lembra, evoca: «rasga-se o
ventre para que se retire a ferros a solidão de um / outro corpo. entendes que
é o teu próprio porque sabes / demasiado sobre a perfeição com que nascem as
coisas. / é o deslumbramento da luz e o medo terrível das / explicações. /
agora passeias sozinha sem a minha presença» (p. 27). Na sequência intitulada
corpo e floração esta relação entre os corpos é como que descontinuada por uma
separação, um distanciamento, uma perda e uma ausência que a morte anuncia. Criação
e morte não são apenas balizas onde se joga o tema da existência, são eles próprios
temas em si. E o corpo não é necessariamente e apenas o corpo físico, material, é também o corpo da memória, a imagem cuja nitidez se vai perdendo com a passagem do tempo. Há uma complexidade nesta relação que os poemas não negam nem
procuram solucionar, participando antes de um reflexo que nos permite pensar no
poema como também ele corpo gerado. O mistério do corpo é, pois, o da
transmutação, é o da recriação através da palavra de algo que se cumpre entre a
concepção e a morte. Os labirintos finais deste livro levam todos ao mesmo
destino, sendo escusado aqui enunciá-lo, mas não sendo supérfluo apontar a
intenção da poesia neste domínio: «queríamos um poema enquanto criação, última
e / definitiva, do mundo» (p. 83). Ora, se cada poema é o seu próprio mundo, a
génese engendrada neste livro permitiu uma inquietante cosmogonia. Muito mais
equilibrado, por assim dizer, do que Sombras Mortas Entre os Dedos, este Corpo:
Labirintos. deixa pistas atraentes sobre uma poesia que ainda está a
desenvolver-se nos enredos da sua própria concepção.
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