Depois de no final de 2015 ter levado à cena um primeiro
terceto de Dramatículos — Comédia, Fragmento de Teatro I e Fragmento de Teatro II —, o
Teatro da Rainha regressou recentemente a Samuel Beckett com mais um conjunto
de três peças muito breves: Eu não, Acto sem Palavras I e Cadeira de Embalar.
Não existindo qualquer relação imediata entre as três, tanto de carácter cronológico
como de índole temática, torna-se agradável projectar no encadeamento escolhido
um sentido de tipo dialéctico. Eu não corresponderia a uma tese acerca dos
limites da representação, opondo-se-lhe a pantomima de Acto sem Palavras I. Do
conflito entre ambas, resultaria a síntese ensaiada em Cadeira de Embalar. Como
é óbvio, uma construção deste tipo apoia-se única e exclusivamente em
percepções às quais tanto a obra de Beckett como as múltiplas interpretações
que sobre ela possam ser feitas são alheias. De resto, quando se trata de
discutir o texto beckettiano qualquer especulação de tipo hermenêutico resulta
pobre perante os enigmas produzidos pela radical experimentação da linguagem
que o autor nos propõe. Arriscaria mesmo dizer que interpretar uma peça do
autor de Whoroscope é quase tão ridículo quanto esperar de um fantasma que dialogue
connosco, dada a especificidade das personagens e das situações que dão corpo e
forma a um total desprezo pelas convenções do processo comunicacional. Daí também
que estas três peças, ao focarem-se em órgãos físicos concretos (boca, mãos,
olhos), nos desafiem em conjunto a capacidade de construção de um corpo no qual
consigamos ver reflectidos aspectos da nossa parca existência.
Eu Não/Not I foi
escrita em 1972, datando a sua publicação do ano seguinte. Há uma versão
portuguesa, com o título Não Eu, publicada pela Húmus, em 2013, com tradução de
Paulo Eduardo Carvalho para a Colecção Teatro Nacional São João. A encenação de
Fernando Mora Ramos respeita as versões mais tardias da peça, eliminando a
figura de um suposto Auditor para concentrar toda a atenção na boca que, isolada
num palco completamente escuro, vai debitando freneticamente um discurso aparentemente
desorganizado. O efeito alucinatório da velocidade com que as palavras são proferidas
contrastará com a ausência de palavras na peça seguinte, resultando no “acto final”
numa hipnótica e lenta repetição de um texto minimalista. O despojamento cénico
adensa aqui a importância do dizer ante aquilo que se diz, pois o aspecto mais
relevante parece ser a incontinência verbal da personagem-boca, o efeito
de ruído que provoca desconforto no ouvinte, a ânsia de ser ouvido sem esperar
ser compreendido.
Este adiamento da compreensão volta a estar em causa na peça
seguinte. Acto sem Palavras I/Acte sans paroles I surgiu em 1957 em conjunto
com Fin de partie/Fim de Partida (na tradução de Manuel de Seabra). Pela forma
como está vestido, podemos supor que a personagem em palco é um louco fechado
numa cela pavloviana, sujeito a várias experiências que desafiam as suas
capacidades lógicas. Os desafios que lhe são colocados resultam sempre, porém,
em novos obstáculos, um pouco à semelhança do que sucede no mundo moderno dos
objectivos e das metas. A peça termina com a desistência da personagem, a qual
se deita no chão, deixa de reagir aos estímulos e concentra o olhar nas suas
próprias mãos. Fábio Costa encarna lindamente o típico herói passivo que encontramos em múltiplas obras do
autor irlandês, por certo irónico mas com a intensidade dramática dos marginais
que traduzem diversas formas de resistência à normalização do discurso (sejam
eles aleijados, vagabundos, loucos ou paralíticos).
Este gesto de resistir
desistindo descamba na última das peças com um resultado deveras perturbador. Escrita
originalmente em inglês, Cadeira de Embalar é um dos últimos trabalhos do
dramaturgo. Surgiu em 1980 com o título Rockaby (Berceuse na versão francesa),
estando disponível no YouTube uma versão de Alan Schneider com Billie Whitelaw que vale a pena rever.
Os olhos da mulher idosa que se balança numa cadeira são o princípio a partir
do qual a comunicação se processa, ao insistirem em manter-se abertos enquanto
em voz off o pensamento discorre sobre alguém que está a uma janela a observar
os outros e à espera de ser observado. É inevitável vislumbrar-se aqui a tese
que do frenesim vocabular inicial à silenciosa desistência posterior fazem da idosa
na cadeira de baloiço uma metáfora da condição ontológica do indivíduo, ser
isolado no seu interior que tomba em solidão por nele ser já dada como adquirida
a impossibilidade de comunicação.
O facto de tanto em Eu Não como em Cadeira de Embalar ouvirmos a voz da mesma actriz, oferece a este encadeamento um curioso jogo de contrastes entre a velocidade da primeira peça e a lentidão da última, entre a boca isolada em ruído incontinente e o corpo saturado de Isabel Lopes a pedir para a voz lenta do pensamento não parar enquanto ela se balança numa cadeira. Ora, numa época em que todos falam e poucos
se ouvem, fazendo do falar e do dizer um punhal com que esperam ferir a
solidão, é no mínimo um transtorno depararmo-nos com esta figura onde facilmente
se projecta a delonga inútil dos nossos maiores temores: o silêncio, o fim, a
morte. Transtorno bom, porém. Porque é a baralharmos e a confundirmos a lógica da
existência que aprendemos a ser humildes face ao que realmente importa.
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