quinta-feira, 14 de abril de 2016

DRAMATÍCULOS


Depois de no final de 2015 ter levado à cena um primeiro terceto de Dramatículos — Comédia, Fragmento de Teatro I e Fragmento de Teatro II —, o Teatro da Rainha regressou recentemente a Samuel Beckett com mais um conjunto de três peças muito breves: Eu não, Acto sem Palavras I e Cadeira de Embalar. Não existindo qualquer relação imediata entre as três, tanto de carácter cronológico como de índole temática, torna-se agradável projectar no encadeamento escolhido um sentido de tipo dialéctico. Eu não corresponderia a uma tese acerca dos limites da representação, opondo-se-lhe a pantomima de Acto sem Palavras I. Do conflito entre ambas, resultaria a síntese ensaiada em Cadeira de Embalar. Como é óbvio, uma construção deste tipo apoia-se única e exclusivamente em percepções às quais tanto a obra de Beckett como as múltiplas interpretações que sobre ela possam ser feitas são alheias. De resto, quando se trata de discutir o texto beckettiano qualquer especulação de tipo hermenêutico resulta pobre perante os enigmas produzidos pela radical experimentação da linguagem que o autor nos propõe. Arriscaria mesmo dizer que interpretar uma peça do autor de Whoroscope é quase tão ridículo quanto esperar de um fantasma que dialogue connosco, dada a especificidade das personagens e das situações que dão corpo e forma a um total desprezo pelas convenções do processo comunicacional. Daí também que estas três peças, ao focarem-se em órgãos físicos concretos (boca, mãos, olhos), nos desafiem em conjunto a capacidade de construção de um corpo no qual consigamos ver reflectidos aspectos da nossa parca existência.
Eu Não/Not I foi escrita em 1972, datando a sua publicação do ano seguinte. Há uma versão portuguesa, com o título Não Eu, publicada pela Húmus, em 2013, com tradução de Paulo Eduardo Carvalho para a Colecção Teatro Nacional São João. A encenação de Fernando Mora Ramos respeita as versões mais tardias da peça, eliminando a figura de um suposto Auditor para concentrar toda a atenção na boca que, isolada num palco completamente escuro, vai debitando freneticamente um discurso aparentemente desorganizado. O efeito alucinatório da velocidade com que as palavras são proferidas contrastará com a ausência de palavras na peça seguinte, resultando no “acto final” numa hipnótica e lenta repetição de um texto minimalista. O despojamento cénico adensa aqui a importância do dizer ante aquilo que se diz, pois o aspecto mais relevante parece ser a incontinência verbal da personagem-boca, o efeito de ruído que provoca desconforto no ouvinte, a ânsia de ser ouvido sem esperar ser compreendido. 
Este adiamento da compreensão volta a estar em causa na peça seguinte. Acto sem Palavras I/Acte sans paroles I surgiu em 1957 em conjunto com Fin de partie/Fim de Partida (na tradução de Manuel de Seabra). Pela forma como está vestido, podemos supor que a personagem em palco é um louco fechado numa cela pavloviana, sujeito a várias experiências que desafiam as suas capacidades lógicas. Os desafios que lhe são colocados resultam sempre, porém, em novos obstáculos, um pouco à semelhança do que sucede no mundo moderno dos objectivos e das metas. A peça termina com a desistência da personagem, a qual se deita no chão, deixa de reagir aos estímulos e concentra o olhar nas suas próprias mãos. Fábio Costa encarna lindamente o típico herói passivo que encontramos em múltiplas obras do autor irlandês, por certo irónico mas com a intensidade dramática dos marginais que traduzem diversas formas de resistência à normalização do discurso (sejam eles aleijados, vagabundos, loucos ou paralíticos). 
Este gesto de resistir desistindo descamba na última das peças com um resultado deveras perturbador. Escrita originalmente em inglês, Cadeira de Embalar é um dos últimos trabalhos do dramaturgo. Surgiu em 1980 com o título Rockaby (Berceuse na versão francesa), estando disponível no YouTube uma versão de Alan Schneider com Billie Whitelaw que vale a pena rever. Os olhos da mulher idosa que se balança numa cadeira são o princípio a partir do qual a comunicação se processa, ao insistirem em manter-se abertos enquanto em voz off o pensamento discorre sobre alguém que está a uma janela a observar os outros e à espera de ser observado. É inevitável vislumbrar-se aqui a tese que do frenesim vocabular inicial à silenciosa desistência posterior fazem da idosa na cadeira de baloiço uma metáfora da condição ontológica do indivíduo, ser isolado no seu interior que tomba em solidão por nele ser já dada como adquirida a impossibilidade de comunicação. 
O facto de tanto em Eu Não como em Cadeira de Embalar ouvirmos a voz da mesma actriz, oferece a este encadeamento um curioso jogo de contrastes entre a velocidade da primeira peça e a lentidão da última, entre a boca isolada em ruído incontinente e o corpo saturado de Isabel Lopes a pedir para a voz lenta do pensamento não parar enquanto ela se balança numa cadeira. Ora, numa época em que todos falam e poucos se ouvem, fazendo do falar e do dizer um punhal com que esperam ferir a solidão, é no mínimo um transtorno depararmo-nos com esta figura onde facilmente se projecta a delonga inútil dos nossos maiores temores: o silêncio, o fim, a morte. Transtorno bom, porém. Porque é a baralharmos e a confundirmos a lógica da existência que aprendemos a ser humildes face ao que realmente importa. 

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