Composto entre Abril e Agosto de 1873, Une Saison en
enfer foi impresso em Bruxelas nesse mesmo ano em que Verlaine atingiu Rimbaud
com um tiro de pistola. São textos pejados de referências autobiográficas,
escritos por um jovem de dezoito ou dezanove anos, sendo muito provável que
alguns datarão de invernos anteriores, com uma existência frenética na demanda
de uma utopia verdadeiramente poética. As fugas anteriores do seio doméstico, governado
por uma mãe tirânica sob o fantasma do esposo há muito ausente, ao encontro de
uma inspiradora mas insuficiente Comuna parisiense, corresponderão mais a um apaixonado
e apaixonante anseio de liberdade do que a convicções profundas sobre as
desordens e os desnortes do mundo. Anseio de liberdade na mesma medida que confronto com a
educação conservadora sofrida desde a primeira hora. Para o entender, basta ler
as palavras introdutórias dessa obra-prima a que Cesariny ofereceu o título português
de Uma Cerveja no Inferno: «Consegui destruir em mim toda a esperança. Contra
toda a alegria lancei o bote cego da besta feroz. Estranguladas.»
Ainda mal tinha nascido, o poeta Rimbaud empenhava-se já
na recuperação de antigos apetites. Ele, que chamava à sua própria composição
«caderno diário de danado». A consciência da danação não surge de um fingimento
poético, não é uma dessas encenações às quais a poesia contemporânea nos
habituou, não representa no palco da vaidade a encarnação de uma personagem.
Por isso se mantém tão viva e convincente. Admiraríamos os textos de Rimbaud se
ignorássemos todos os pormenores da sua biografia? Por certo que sim. E a razão
para tal é simples: os seus textos têm uma vida própria, não se encerram nem
reduzem às experiências de quem os produziu, fazendo surdir na palavra um outro
que, sendo o próprio, é já uma outra coisa, autónoma, independente, livre.
Paradoxalmente, esse legado «Eu é outro», que tão bem se conjuga com a «liberdade
livre» reivindicada para a poesia, torna o outro um próprio sem qualquer
mistério, transforma o texto numa personalidade cuja singularidade se afirma já
não por intermédio de reflexos ou confissões, mas pela potencialização do ser.
Isto significa, ao mesmo tempo, ruptura e revolução. Ruptura com o passado, com a história pessoal, pequena morte, suicídio, corte umbilical, em prol de uma transformação radical que favoreça um sangue novo. E revolução, ainda eivada por ilusões que rapidamente se revelariam decepcionantes. Mau Sangue é muito provavelmente um dos textos mais reveladores deste processo, sendo nele perceptível o auto-retrato jocoso com base nas raízes a partir das quais o rosto se transforma e se decompõe como uma figura de cera a derreter-se, para se metamorfosear numa outra matéria, com uma outra forma: «Abomino todos os modos de vida. Patrões e operários, todos rustres, ignóbeis. A caneta na mão vale a mão na charrua. — Que século de mãos! — Nunca dominarei a minha mão. Além disso, o culto do doméstico vai longe de mais. A honestidade do peditório enerva-me. Os criminosos repugnam-me como castrados: eu, estou intacto e isso é-me indiferente».
Como não poderiam comover-nos estas palavras? Jovens,
frescas, autênticas como nenhumas hoje logram ser, são o bisturi da verdade incidindo
na anatomia da mentira universal. Rompem, rasgam, reviram o espírito dos tempos
para acusarem a padronização de uma sociedade assente em pilares
civilizacionais corruptores do indivíduo, das suas paixões e desejos, da sua
mais natural ambição: ser livre. De corpo inteiro. Como consegui-lo se, desde
logo, metade do nosso corpo é a priori rejeitada? A metade material pelos
professores da fé, a metade espiritual pelos professores da matéria. A obra
assinada por Rimbaud é um grito de revolta contra as poderosas máquinas
esterilizadoras da nossa civilização, um grito contra o tédio ao qual se entregam
os escravos da moral cristã e uma exaltação da verdade que se esconde por
detrás das fachadas morais que tudo normalizam e cristalizam. Palavras pagãs de
um programa que se anuncia e será cumprido à risca: «Eis-me na praia
armoricana. Que as cidades cintilem ao anoitecer. A minha jornada está feita:
deixo a Europa. O ar do oceano queimará meus pulmões; ignotos climas me
bronzearão. Nadar, pisar erva, caçar, fumar, fumar muito; beber licores
abrasivos como metal fundente — como faziam os nossos queridos antepassados em
volta das fogueiras».
A quem devemos agradecer o metal fundente? A Rimbaud? A
Cesariny? Nenhum deles foi um herói, ambos tombaram como mortais. O segundo
envelhecendo, o primeiro convalescendo. Já depois de ter abandonado, se é que
alguma vez abandonou, a poesia. No ensaio memorável que lhe dedica, Yves
Bonnefoy avança com uma forte hipótese para a compreensão desse abandono:
«Talvez a poesia, ao envolver-nos inteiros na busca da unidade, numa relação
tão absoluta quanto possível com a própria presença do ser, nos separe assim
dos outros seres, restabelecendo a dualidade que poderíamos julgar desaparecida.
Talvez a poesia seja apenas um impasse. Que só encontre a sua verdade no
reconhecimento do fracasso». Ora, rasurando por completo a biografia, cindindo
a leitura ao texto, torna-se claro haver no decorrer das frases e dos versos o
caminho que leva da ilusão à desilusão, do amor à morte, através de uma
inquietude e de um desassossego que todas as almas desviantes e inadaptadas
absorvem até à solidão, ao isolamento, ao exílio.
Mau Sangue toca-nos por ser oracular, por haver nele o prenúncio
de uma passagem pela Terra. Em certo sentido, podemos mesmo afirmar, sem cair no ridículo
místico, haver nessas palavras a prova do Vidente. Talvez o poeta tenha ido ao
encontro das suas visões, talvez seja isso o que fazem todos os visionários,
talvez o messianismo seja o oposto disto mesmo, ou seja, uma espera inútil do
porvir contrária à acção, à vontade, à paixão, ao desejo. Podíamos rematar com
uma frase de Being Beauteous (título que Cesariny também respigou), das
Iluminações: «Les couleurs propres de la vie se foncent, dansent, et se
dégagent autor de la Vision, sur le chantier». Eis como a traduziu Cesariny:
«As cores próprias da vida escurecem, dançam, soltam-se em torno da Visão, no
estaleiro». Mas neste caso prefiro a versão de Llansol: «No decurso da obra, as
cores da vida ensombreiam-se, dançam e libertam-se da Visão». Sur le chantier,
no estaleiro, no decurso da obra, literalmente no local, o que sobressai da Visão
é uma dança ferida pelo escurecer, o corpo que cede, um “êxtase alegre”
derrotado pela doença da vergonha denunciada num dos poemas finais:
VERGONHA
Enquanto a navalha não tiver
Cortado este cérebro,
Esta espécie de massa a vapor, branca,
Verde e gorda, sempre a mesma,
(Ah! Ele devia cortar o seu
Nariz, o seu lábio, as suas orelhas,
A sua barriga!, e deixar de usar
As suas pernas!, ó maravilha!)
Mas não; verdade, penso que
Enquanto para a sua cabeça a navalha,
Os cálculos para os seus rins,
Pra as suas tripas a chama,
Não tiverem actuado, a criança
Rabina, a grande estupidazinha,
Nem por um instante deixará
De ser manhosa e traiçoeira,
Como um gato das Montanhas Rochosas,
De empestar todas as esferas!
Ó meu Deus!, que ao menos quando
Morrer alguma oração se eleve.
- Jean-Arthur Rimbaud, Iluminações / Uma Cerveja no
Inferno, trad. Mário Cesariny, Estúdios Cor, Colecção Mocho, Abril de 1972;
- Arthur Rimbaud, O Rapaz Raro — Iluminações e Poemas,
trad. Maria Gabriela Llansol, Relógio D' Água Editores, Maio de 1998;
- Yves Bonnefoy, Rimbaud, trad. Filipe Jarro, Cotovia,
Janeiro de 2005.
1 comentário:
Mas dói quando pensamos que deve ter sido um inferno viver dentro de uma alma, de uma vida, assim.
A dor, porém, pode ser tão bela.
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