Está cada vez mais difícil garantir alguma lucidez. A
opção recai por cingir a vida às tarefas domésticas, ao banal quotidiano,
focando atenções no que se mantém como sendo o essencial: a vida vidinha.
Liga-se a televisão e ficamos a saber de um jovem de 20 anos espancado até à
morte à porta da Universidade onde estudava, mudamos de canal e somos
bombardeados pelo tiroteio na Ameixoeira, insistimos e deparamos com uma
explosão no Seixal. Já com a televisão desligada, pega-se num jornal. 12
portugueses mortos em França numa carrinha conduzida por um jovem de 19 anos é
ainda notícia, no mesmo dia em que ficamos a saber que em Sintra há cada vez
mais crianças abandonadas. No meio disto tudo qualquer apontamento positivo, alegre,
inspirador, motivante, só pode ser brincadeira do dia das mentiras. Deslocados
de tudo e mais alguma coisa, refugiamo-nos numa solidão nada consoladora. Antes
pelo contrário. Nas redes sociais também não é diferente. Este convida-te para
um evento, aquele identifica-te numa publicação, e num frenesim indescritível
de gostos e de partilhas elaboram-se teses sobre o BANIF, discutem-se
declarações de voto pela democracia em Angola, fazem-se piadas sobre tudo e
mais alguma coisa, passa-se pela lixeira do mundo como quem caminha sobre as
águas. Somos todos santos e beatíficos num mundo assim, pelo que mais estranho se
torna pressenti-lo tão insuportavelmente sujo. E nós a lutar arduamente por
alguma lucidez. Canais desligados, apenas uma janela aberta para o mundo. Uma
simples janela numa sala empoeirada a receber a tarde estranhamente luminosa. O
bairro está sossegado. Nem os estorninhos inquietam a placidez do dia.
Escuta-se um motor ao largo, um cão mais próximo, crianças à solta numa
distância interminável. Apesar de tudo, os dias correm, vão correndo. A lucidez
é uma reconquista permanente, uma reivindicação diária. Não está fácil, mas que
podemos fazer?
2 comentários:
Podemos desligar todos os serviços noticiários. Aquilo que for mesmo importante, alguém nos contará ao almoço. O resto é ruído.
De facto.
Enviar um comentário