A história da literatura universal está pejada de burros,
havendo deles que falam como humanos ou simplesmente zurram como convém à
espécie. Certos asnos são parábolas, metamorfoses, encarnações absurdas,
críticas, estrambólicas do universo humano, à luz do que julgamos saber do
mundo animal. O burro é um animal simpático, muito mais do que o homem. Temos-lhe
um carinho especial, talvez pela ameaça de extinção, ou pela proximidade aos
mitos da nossa governabilidade. Não nasceu Jesus num palheiro, com um burrinho
ali ao lado? Mas também o olhamos, ao burro, como um animal teimoso. As fábulas
com burros mostram-nos amiúde como animais velhos, acabados, simpáticos mas
inúteis. São o que de mais parecido há connosco no mundo dos quadrúpedes. Podem
não ser muito inteligentes, mas trabalharam a vida inteira, carregaram penosos
fardos, foram obedientes apesar da teimosia e choram. Os burros choram, tal
como nós, choram um choro de fazer chorar, comovem-se com a perda dos donos,
são escravos fiéis, tão humanos. Não admira, por isso, que tantas vezes
apareçam na história da literatura universal no centro de maravilhosas
narrativas. Recordemos três brevíssimos exemplos. Luciano de Samósata (125-190
d.C) foi autor de cerca de oitenta obras, sendo uma das mais famosas a sátira
intitulada Eu, Lúcio — Memórias de um Burro (sirvo-me da tradução de Custódio
Magueijo, para a colecção Clássicos Inquérito, 1992). Neste texto corrosivo, cheio de
peripécias e de episódios picantes, o burro é um homem
metamorfoseado por acidente. «Luciano satiriza a superstição dos seus
contemporâneos», mas vai além disso. Lúcio é um jovem curioso que quer saber
mais do que lhe é devido, acabando transformado num burro depois de ter
convencido uma escrava a besuntá-lo com a loção de uma «dessas mulheres peritas
em artes mágicas». Em vez de se transformar numa bela ave, acaba
transformado num burro. São inúmeras as peripécias que se seguem após o
acidente, muitas delas derivadas do espanto que causava um burro comportar-se
como um ser humano. Roubado, comercializado, em fuga, adoptado, Lúcio é um
burro fogoso, incapaz, a espaços, de resistir às tentações mais baixas. Termina
na casa «dum sujeito muitíssimo rico, de Tessalonica», tornando-se famoso pelos
hábitos e práticas invulgares num burro, assim como pelas extraordinárias
habilidades: beber vinho, lutar e dançar e, maravilha das maravilhas, responder
não ou sim com a-propósito. Mas quem lhe conheceu a maior das habilidades foi
uma mulher estrangeira:
Como já era de noite e o nosso amo nos tivesse dado
licença de sair da sala de jantar, retirámo-nos para o quarto onde costumávamos
dormir, e demos com a mulher, que já tinha chegado há muito e estava à beira da
minha cama; tinham-lhe trazido uns travesseiros fofos e posto cobertores;
enfim, havia uma cama no chão, preparada para nós. Depois, os criados da mulher
foram dormir para um sítio próximo, em frente do quarto, enquanto ela acendia
uma candeia enorme, que brilhava como uma fogueira. Em seguida, despiu-se e,
assim toda nua, aproximou-se da candeia, deitou perfume de um frasquinho de
alabastro, untou-se com ele e perfumou-me também a mim, embebendo-me
especialmente o focinho; depois, beijou-me, pôs-se a falar comigo como se fosse
um seu amante homem, pegou-me pela arreata e puxou-me para a cama no chão. E eu,
que aliás não precisava que ninguém me convidasse para a função, que, além
disso, já estava um tanto ou quanto «pingado» com grande quantidade de vinho
velho, e, para mais, excitado pela esfregadela do perfume, e, finalmente,
perante uma «garota» toda boa, baixo-me… mas o caso é que estava seriamente
embaraçado com a forma de «montar» a criatura. É que, realmente, desde que
estava transformado em burro, nunca me acontecera ter um contacto habitual com
burros, e muito menos ter relações íntimas com uma burra. Além disso, uma coisa
me causava um receio nada pequeno: que a mulher, por falta de «espaço», ficasse
desfeita e eu viesse a ser exemplarmente punido por homicídio. Não sabia eu que
esse era um receio sem fundamento, pois a mulher provocava-me com muitos
beijos, por sinal bem eróticos; e assim que viu que eu já não tinha mão em mim,
deita-se a meu lado como se eu fosse um homem, abraça-me, introduz a «coisa» e
recebe-a em pleno. E eu, coitado, ainda receoso, tentava retirar-me suavemente,
mas a fulana atracou-se-me com tanta força ao lombo, que eu não podia
retrair-me: ela mesma ia atrás do «fugitivo». Quando, enfim, me convenci
completamente a colaborar no prazer e na satisfação da mulher, a partir daí,
comecei a «aviá-la» sem meias medidas e tendo para comigo que não ficava a
dever nada ao amante de Pasífae. Mas o facto é que a mulher se revelou tão
propensa às coisas do amor e tão insaciável nos prazeres do coito, que gastou
toda a noite comigo.
Que não cause alarme a cena zoófila, naquele tempo
era vulgar os homens transformarem-se em burros para satisfazerem apetites de
mulheres estrangeiras. Resta dizer que ao apresentar-se já sob a forma humana à
mesma mulher, Lúcio não teve a mesma sorte. Tal era o amor pelos animais nesses
tempos idos. Também de pouca fortuna foi a história do burro contada por Padre
Camões (n. ? – m. 1825) em Testamento de D. Burro pai dos anos. Escrito em
verso tosco, este testamento é um «ajuste de contas (atrasadas e recentes) com
a hipocrisia, a maldade, a farsa pública local e colectivamente silenciada»
(Aníbal Fernandes). O local é os Açores, as belas ilhas dos Açores, onde o Grão
Jumento padeceu das maiores priva e provações. Com pouco mais de quarenta anos,
não são muitos os bens de que possui para deixar em testamento. Ainda assim,
sem herdeiros directos, apesar dos doze casamentos, sente-se na obrigação de
outorgar por inúmeros testamenteiros as mais diversas partes do seu corpo. Deste
modo, para humilíssima ideia do que por aqui vai:
A José Paciente e a Francisco Dente
Deixo em legado pio o meu pendente,
Uma jóia de tanta estimação
Que render não pode menos de um tostão!
Este, mando, repartam igualmente
Com Manuel Margarida, meu parente,
Pois a este já não tenho que deixar,
Só se o que ficava quando ei ia cagar.
E deixa as tripas, o fígado e o coração, deixa gamelões
de urina, o olho do cu, os olhos e o licor que lhe corria do pendente, e deixa
a língua, bem afiada, visto está, e tudo o mais quanto lhe resta até nada mais
lhe sobrar:
A meu primo Manuel Furtado Sousa
Desejava deixar-lhe alguma cousa
Mas, como os meus bens findos são,
Só lhe deixo um cagalhão.
É neste tom que o mais miserável e desgraçado dos asnos
distribui pelas mais altas e dignas personalidades do arquipélago as suas
posses, não sendo de espantar que à falta de outras se tenha dignado a
distribuir o que lhe restava de seu: o belo corpinho. A consciência, como seria
de esperar em situações análogas, foi ele deixar a um tribunal que o encarcerou
numa cela da Ilha Terceira. Muito distinta destas, é a história do último dos
burros que aqui trazemos. Platero era mesmo burro, e o seu dono, um dos mais injustamente esquecidos Prémio Nobel da Literatura (1956), dedicou-lhe a obra Platero y yo (1914, primeira edição completa em 1917). São pequenas prosas memoráveis sobre a relação de amizade entre um homem e o seu animal de estimação predilecto, capazes de comover o leitor ao mesmo tempo que desenham uma paisagem da ruralidade que transcende uma percepção imediata do espaço geográfico. Numa edição crítica da obra, Jorge Urrutia alerta-nos para as leituras injustas a que foi sujeito Platero y yo. E diz-nos que se trata de um dos textos mais belos da literatura espanhola, dorido e doloroso, testemunho lírico da desarmonia do mundo. Pelo meio encontramos também exercícios de uma delicada ironia:
ASNOGRAFIA
Leio num dicionário: «Asnografia: s. f.: diz-se, ironicamente, da descrição do asno».
Pobre asno! Tão bondoso, tão nobre, tão inteligente como és! Ironicamente... Porquê? Nem uma descrição séria mereces tu, cuja descrição exacta seria um conto de Primavera? Se ao homem que é bom deveriam chamar asno! Se ao asno que é mau deveriam chamar homem! Ironicamente... De ti, tão intelectual, amigo dos velhos e das crianças, dos regatos e das borboletas, do sol e dos cães, das flores e da lua, paciente e reflexivo, melancólico e amável, Marco Aurélio dos prados...
Platero, que sem dúvida compreende, olha-me fixamente com seus grandes olhos brilhantes, de uma serena firmeza, onde o sol brilha, diminuto e refulgente, num breve e convexo firmamento negro. Ai! Se a sua peluda cabeçorra idílica soubesse que eu lhe faço justiça, que eu sou melhor que esses homens que escrevem Dicionários, quase tão bom como ele!
E escrevi à margem do livro: «Asnografia: s. f.: deve dizer-se, com ironia, claro está!, da descrição do homem imbecil que escreve dicionários».
Não é certo que Juan Ramón Jimenez tenha, de facto, escrito o que diz ter escrito na margem do livro. Mas escrevemos nós. Perante os exemplos acima referidos, como é possível usarmos ainda hoje o burro para classificar a falta de inteligência? De onde poderão vir as orelhas de burro senão da ignorância destes textos? Nem Lúcio nem Platero, nem mesmo o desgraçado Grão Jumento, participam da estupidez a que confinamos o asno com a nossa ignorância. Somos injustos para com os burros, uma injustiça que facilmente se superaria passássemos a chamar aos homens apenas o que eles são: homens.
3 comentários:
A propósito deste teu post lembrei-me das Mil e Uma Noites, onde os burros estão muito presentes.
eis uma boa razão para me atirar às 1001 noites :-)
Tenho uma edição muito manhosa. Talvez possas estudar isso da perspetiva do utilizador e dizer-me qual é a melhor edição em português. Quero comprar outra.
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