quarta-feira, 27 de abril de 2016

A VIDA SEM PRINCÍPIOS

Com a edição de A Vida sem Princípios (Março de 2016, trad. Luís Leitão), a Antígona dá continuidade a uma tradição que poderíamos apelidar de Biblioteca Thoreau. Do mesmo autor já haviam sido publicados Walden ou a vida nos bosques, Caminhada e A Desobediência Civil, em conjunto com Defesa de John Brown. Na introdução de Luís Leitão anuncia-se ainda a publicação para breve de Cores de Outono. São textos fundamentais para a compreensão do pensamento de um dos mais relevantes filósofos norte-americanos, assim como da influência por este exercida sobre movimentos ainda hoje activos e com obra feita nos domínios da ecologia e da defesa dos direitos humanos. Henry David Thoreau (n. 1817 – m. 1862) é sobretudo conhecido pela aventura relatada em Walden, cerca de dois anos em rigoroso regime de auto-suficiência junto às margens do lago que ofereceu o nome à obra. Publicado em 1854, Walden; or, Life in the Woods inspirou movimentos ecologistas, literários, políticos e sociais, enquanto testemunho vivo de um modo de vida mais próximo da Natureza, capaz de resistir à servidão imposta pelo mundo industrializado, crítico da civilização ocidental e respeitador da espiritualidade indígena. Life Without Principle, publicado postumamente em 1863, é o texto base de uma conferência por diversas vezes proferida que se inscreve no contexto de uma atitude subversora da sociedade de consumo. Ao assistir à industrialização da América, Thoreau testemunha a emergência de um capitalismo selvagem e despótico que arrastou, na sua vaga destruidora, paisagens e povos, fauna e flora, culturas desprotegidas, ao mesmo tempo que impôs ao mundo um modo de vida padronizado cuja principal característica é hoje bem visível na escravidão que o mundo do trabalho alimenta e propaga. Aquilo a que chama «trabalho absurdo» não é mais do que a usurpação diária de tempo e de ócio àqueles que, dotados de pensamento, se vêem impossibilitados de exercê-lo por andarem tão ocupados com a satisfação de frivolidades. Temos assim que à endeusação do trabalho e das forças produtivas corresponde uma dessacralização do saber, na medida em que este se vê substituído pela necessidade de desenvolvimento de competências que já nada têm que ver com a actividade mental de reflexão promovida pelo chamado «tempo livre». Ora, a um tempo livre corresponde um tempo de liberdade, por oposição ao servilismo, à submissão e à escravidão forçadas pelo tempo ocupado com a satisfação não do necessário, mas do supérfluo, ou seja, de tudo quanto garanta a vaidade daquele que por possuir se julga superior. O resultado desta mecânica social não é difícil de prever e está hoje à vista de todos: uma total infantilização do pensamento, o espírito crítico e a capacidade de diálogo substituídos pela tagarelice, pela ejaculação precoce de opiniões sem fundamento, uma ineficaz banalização da informação, a qual só por desplante ou ignorância podemos confundir com conhecimento. Em certo sentido, A Vida sem Princípios antecipa a actualidade ao denunciar, de um modo muito perspicaz, o império do supérfluo e do efémero que Lipovetsky desenvolveu ou ao “pôr-nos de sobreaviso” quanto ao prejuízo de um putativo saber alicerçado na acumulação vácua de pormenores. É o saber das redes, tão popular entre as massas como outrora foram populares os jogos de gladiadores. Apesar de tudo, sejamos capazes de rir deste sentido de progresso enquanto não encontrarmos resposta para as dúvidas principais: «Podemos considerar este país como a terra dos homens livres? O que significa estarmos libertos do jugo do rei Jorge se continuamos escravos do rei Preconceito? O que significa nascer livre e não viver livre? Qual é o valor de uma liberdade política que não seja um meio de liberdade moral? De que nos vangloriamos: de uma liberdade para sermos escravos ou de uma liberdade para sermos livres?» (pp. 54-55) Parece-nos óbvio, hoje em dia, que o interesse de Henry David Thoreau se mantém por nos obrigar, até pelo exemplo pessoal que nos deixou de herança, a ir um pouco mais longe no sentido de uma autocrítica daquilo a que chamamos progresso e civilização. A sua actualidade mantém-se não por sermos escravos mas pela consciência que tantas vezes falta de que ainda não somos livres, e jamais o seremos enquanto preferirmos entregar o desígnio das nossas vidas aos tentáculos de um poder com uma tremenda capacidade de sedução, o poder das mãos invisíveis que nos governam oferecendo-nos a ilusão de que somos nós, os cidadãos, quem mais ordena. Como pode alguém ordenar o que quer que seja se nem de si mesmo parece querer saber num mundo onde o entretenimento e o sensacionalismo dita as regras, onde a razão é cada vez mais relegada para o plano da inutilidade e a flor da pele comanda acções inconsequentes das quais, ao fim e ao cabo, pouco mais logramos colher do que uma inacção sem horizonte nem utopias?

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