Apesar de se tratar de um primeiro romance, Céu Nublado
com Boas Abertas (Quetzal, Fevereiro de 2016) não é o romance de um estreante.
Nuno Costa Santos (n. 1974) tem uma vasta prática literária enquanto cronista,
dramaturgo, guionista, poeta, aforista. De entre os livros que publicou
anteriormente, destacaria precisamente um nesse domínio da frase curta: Melancómico
– aforismos de pastelaria (Produções Fictícias/Guerra & Paz, 2007). O destaque justifica-se por duas razões. Primeiro, por de
algum modo esse livro sintetizar uma perspectiva ética e estética acerca do mundo,
eivada pela conjugação de dois estados de alma num só conceito: melancómico. É
nesta conjugação entre a melancolia e o cómico que podemos observar uma espécie
de suporte para os ambientes explorados por Nuno Costa Santos, os quais são
preenchidos por personagens que nunca chegam a ser trágicas nem se esvaziam por
completo num humorismo absurdizante. O que têm de cómico revela-se nas
preocupações com que se martirizam em insones monólogos interiores, apesar da
consciência que manifestam da inutilidade última de toda e qualquer preocupação.
O que têm de melancólico relaciona-se com esta consciência, acabando ela por
ter o poder de transformar o quotidiano num palco de pequenos e sucessivos
episódios onde o drama, a perda e a derrota são superados por um paradoxal gosto
de ir cumprindo a existência. Em certo sentido, o título Céu Nublado com Boas Abertas,
no que tem de usual e de banal, capta e sintetiza na perfeição essa mesma
postura perante a vida que as personagens principais do livro exteriorizam ao
longo de 250 páginas. Mas há um segundo motivo pelo qual se justifica aqui
falar de um livro de aforismos. Está ele relacionado com a prática de uma
escrita onde a frase curta e objectiva pode ser já considerada imagem de marca.
Não obstante tal evidência, importa referir que, com esforço ou sem ele, Nuno
Costa Santos procurou resistir ao efeito aforístico nas páginas do seu primeiro
romance, sendo raríssimas as vezes em que lhe vislumbramos um paradoxo, uma
frase esforçada de belo efeito, um trocadilho. Parece haver neste caso um
trabalho de linguagem inverso, ou seja, aquilo que tenderíamos a considerar
pobre em termos de labor alegórico e metafórico é ultrapassado por um controle
dos recursos que tem o claro propósito de fazer as situações valerem pelo que possam
ter de explicitamente instigador do pensamento e da reflexão. As duas histórias que se cruzam ao longo do romance,
tanto a do avô materno a braços com uma grave doença pulmonar, como a do neto
que regressa às origens açorianas para aí cumprir um último desejo do seu avô,
valem por si mesmas enquanto testemunhos existenciais. Há nisto tudo uma grande
ilusão que não pode ser negligenciada, e essa grande ilusão é a da
possibilidade de um regresso ao passado. Essa possibilidade revela-se ineficaz
tanto na viagem física aos Açores, com a sua paisagem humana radicalmente
transformada, como na viagem intelectual através dos diários deixados pelo avô.
Se podemos falar de herança neste contexto específico, essa herança é a da tal
consciência de que, apesar das pequenas conquistas, no final sobra-nos o
fracasso, apesar das boas abertas, o céu mantém-se nublado. Que não se enfatize
nem um nem o outro dos estados é revelador de uma busca de equilíbrio que marca
o sentido da existência do narrador. Este não é um romance perfeito.
Há referências escusadas que nada acrescentam à narrativa, por vezes tendemos a
julgar excessivas as citações do diário do avô, a história quase policial que
se intromete no decorrer da viagem aos Açores talvez pudesse ter sido
trabalhada de outro modo, aprofundando o potencial dramático de
algumas daquelas personagens insulares. Apesar disto, há algo de bastante
sedutor na articulação exercida entre o passado e o presente, na caracterização
social e cultural da vida açoriana, na forma como se explora a relação
espiritual entre avô e neto, no modo depurado e sintético com que se enunciam reflexões
que são, no final de contas, o magma da vida: «Não penso o que é que vai ser o
pós-morte. Em vez disso, quero ficar. Quero saber o que é que ainda pode ser a
vida, uma existência com engulhos mas ainda assim habitável e —
por mais que a literatura a pinte com justiça num negro monocromático — é
atravessada aqui e ali por pequenos milagres, alentos solares» (p. 177).
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