sexta-feira, 20 de maio de 2016

CÉU NUBLADO COM BOAS ABERTAS

Apesar de se tratar de um primeiro romance, Céu Nublado com Boas Abertas (Quetzal, Fevereiro de 2016) não é o romance de um estreante. Nuno Costa Santos (n. 1974) tem uma vasta prática literária enquanto cronista, dramaturgo, guionista, poeta, aforista. De entre os livros que publicou anteriormente, destacaria precisamente um nesse domínio da frase curta: Melancómico – aforismos de pastelaria (Produções Fictícias/Guerra & Paz, 2007). O destaque justifica-se por duas razões. Primeiro, por de algum modo esse livro sintetizar uma perspectiva ética e estética acerca do mundo, eivada pela conjugação de dois estados de alma num só conceito: melancómico. É nesta conjugação entre a melancolia e o cómico que podemos observar uma espécie de suporte para os ambientes explorados por Nuno Costa Santos, os quais são preenchidos por personagens que nunca chegam a ser trágicas nem se esvaziam por completo num humorismo absurdizante. O que têm de cómico revela-se nas preocupações com que se martirizam em insones monólogos interiores, apesar da consciência que manifestam da inutilidade última de toda e qualquer preocupação. O que têm de melancólico relaciona-se com esta consciência, acabando ela por ter o poder de transformar o quotidiano num palco de pequenos e sucessivos episódios onde o drama, a perda e a derrota são superados por um paradoxal gosto de ir cumprindo a existência. Em certo sentido, o título Céu Nublado com Boas Abertas, no que tem de usual e de banal, capta e sintetiza na perfeição essa mesma postura perante a vida que as personagens principais do livro exteriorizam ao longo de 250 páginas. Mas há um segundo motivo pelo qual se justifica aqui falar de um livro de aforismos. Está ele relacionado com a prática de uma escrita onde a frase curta e objectiva pode ser já considerada imagem de marca. Não obstante tal evidência, importa referir que, com esforço ou sem ele, Nuno Costa Santos procurou resistir ao efeito aforístico nas páginas do seu primeiro romance, sendo raríssimas as vezes em que lhe vislumbramos um paradoxo, uma frase esforçada de belo efeito, um trocadilho. Parece haver neste caso um trabalho de linguagem inverso, ou seja, aquilo que tenderíamos a considerar pobre em termos de labor alegórico e metafórico é ultrapassado por um controle dos recursos que tem o claro propósito de fazer as situações valerem pelo que possam ter de explicitamente instigador do pensamento e da reflexão. As duas histórias que se cruzam ao longo do romance, tanto a do avô materno a braços com uma grave doença pulmonar, como a do neto que regressa às origens açorianas para aí cumprir um último desejo do seu avô, valem por si mesmas enquanto testemunhos existenciais. Há nisto tudo uma grande ilusão que não pode ser negligenciada, e essa grande ilusão é a da possibilidade de um regresso ao passado. Essa possibilidade revela-se ineficaz tanto na viagem física aos Açores, com a sua paisagem humana radicalmente transformada, como na viagem intelectual através dos diários deixados pelo avô. Se podemos falar de herança neste contexto específico, essa herança é a da tal consciência de que, apesar das pequenas conquistas, no final sobra-nos o fracasso, apesar das boas abertas, o céu mantém-se nublado. Que não se enfatize nem um nem o outro dos estados é revelador de uma busca de equilíbrio que marca o sentido da existência do narrador. Este não é um romance perfeito. Há referências escusadas que nada acrescentam à narrativa, por vezes tendemos a julgar excessivas as citações do diário do avô, a história quase policial que se intromete no decorrer da viagem aos Açores talvez pudesse ter sido trabalhada de outro modo, aprofundando o potencial dramático de algumas daquelas personagens insulares. Apesar disto, há algo de bastante sedutor na articulação exercida entre o passado e o presente, na caracterização social e cultural da vida açoriana, na forma como se explora a relação espiritual entre avô e neto, no modo depurado e sintético com que se enunciam reflexões que são, no final de contas, o magma da vida: «Não penso o que é que vai ser o pós-morte. Em vez disso, quero ficar. Quero saber o que é que ainda pode ser a vida, uma existência com engulhos mas ainda assim habitável e — por mais que a literatura a pinte com justiça num negro monocromático — é atravessada aqui e ali por pequenos milagres, alentos solares» (p. 177). 

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