O LIVRO DA POBREZA E DA MORTE
(1903)
8.
Senhor: mais pobres do que os pobres animais somos,
que com sua morte acabam, mesmo com cegueira,
porque todos nós ainda não morremos.
Dá-nos aquela que a ciência conhece
de atar a vida a uma latada inteira
à volta da qual Maio mais cedo comece.
Pois o que a morte estranha e difícil faz,
é ela não ser a nossa morte; uma qualquer, escura,
que finalmente nos toma por nenhuma estar em nós madura.
Por isso passa uma tempestade que nos desfaz.
Ano após ano no teu jardim estamos
e somos as árvores que suave morte deviam dar;
mas nos dias da colheita envelhecemos,
e como mulheres que acabaste por castigar,
inúteis e estéreis nos fechamos.
Ou o meu orgulho de ser não tem razão:
serão as árvores melhores? Somos nós só reprodução
e colo de mulheres que muito dão?
Com a eternidade tivemos relação
e quando chega a hora do parto, nasce sem sorte
o aborto da nossa morte;
curvo e aflito embrião
cobriu as ínfimas pupilas com a mão
(como se algo horrível o horrorizasse)
e na fronte já formada apareceu
sobretudo o medo do que não sofreu,
e como jovem mulher que passou sem danos
por dores de parto e cesariana, nos fechamos.
Rainer Maria Rilke (n. Praga, 4 de Dezembro de 1875 - m. Montreux, Suíça, 29 de Dezembro de 1926), in O Livro de Horas, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Assírio & Alvim, Maio de 2009, pp. 301-303.
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