A cerca de 150 páginas do fim, talvez não seja má ideia
iniciar um inventário dos epítetos com que Michel Onfray brinda o pai da
psicanálise no seu Anti-Freud (Objectiva, Outubro de 2012). Apoiando-se numa vasta bibliografia, Onfray
começa por desmistificar a genealogia da psicanálise:
Pela leitura dos historiadores críticos, descobre-se por
fim: que Freud organiza o mito da invenção genial e solitária da psicanálise
quando ele, na verdade, foi um leitor voraz que se apropriou de numerosas teses
de autores hoje desconhecidos, cujas descobertas são agora tomadas como suas;
que Freud não inventou a psicanálise, palavra usada antes dele por Auguste
Forel, pois, na verdade, Freud falava de psicoanálise…; que, ao invés da versão
lendária e hagiográfica, existe uma genealogia histórica e livresca do
pensamento de Sigmund Freud — mas que, ainda em vida dele até aos
nossos dias, tudo foi feito para evitar uma leitura histórica da génese da sua
obra, da produção dos seus conceitos, da genealogia da sua disciplina.
Em certo sentido, é precisamente isto que o filósofo
francês propõe. Entenda-se plágio, no entanto, onde se fala de apropriação. A
acusação é fundamentada, seguindo-se uma desmontagem do carácter de Freud que
inclui acusações de egocentrismo, arrivismo e ambição desmesurada. Na sua
origem, traumas de infância oferecidos por uma relação complexa com a mãe. Quem
pretender encontrar aqui uma leitura psicanalizante do visado, sinta-se à vontade. Em
suma:
Freud não é um cientista, não produziu nada de universal,
a sua doutrina é uma criação existencial feita sob medida para viver com os
seus fantasmas, as suas obsessões, o seu mundo interior atormentado e devastado
pelo incesto.
Ou seja, a psicanálise esgota-se no caso Freud. O caso
Freud é o único caso relevante para a compreensão da psicanálise. O que dizer,
então, sobre o caso Freud? Que, no fundo e à superfície, ele é aquilo que se
nega: um artista, na melhor das hipóteses um filósofo. Cientista é que não.
Orgulhoso e megalómano, pretende dinheiro e celebridade, trai por diversas
vezes o segredo profissional ao longo da sua carreira, adormece durante as
sessões, é um homem de má fé, ambicioso, ganancioso, supersticioso e ingénuo,
ciclotímico (sic), depressivo, angustiado e fóbico, cocainómano. O seu método:
Eis assim desmascarado o método de Freud: partir de si
próprio, teorizar para a totalidade dos homens mas, ao fazê-lo, voltar a si
próprio de onde, ao fim de contas, nunca saiu.
A crer na versão de Onfray, e não nos restam muitas
razões para descrer, temos que pelo menos dar o benefício da dúvida. Dinheiro e
fama foram objectivos alcançados. Quanto ao «Freud de má-fé, oportunista,
invejoso, interessado, intratável, hesitante, seguro de si, ávido de sucesso,
de notoriedade e de dinheiro, correndo atrás do reconhecimento universitário,
neurótico, somático, crente na numerologia e no ocultismo», não está muito
distante dos traços de personalidade que reconhecemos em inúmeros exemplares do
vasto universo das pessoas geniais, as quais se caracterizam, precisamente, por
tamanhas e tais excentricidades. Acontece que no caso de Freud a genialidade
vem associada a obsessões que o impelem a deslocar para o domínio do científico
matérias que consideraríamos mitológicas, adoptando como metodologia práticas
que não podem senão ser tomadas como actualizações de um xamanismo ancestral.
As conclusões a que chegou acerca dos seus casos mais mediáticos podem ser
risíveis à luz de uma mente iluminista, mas são deveras inspiradoras de um
ponto de vista metafórico e alegórico, são literárias no mais nobre dos
sentidos, são pura arte. Freud pode não ter curado ninguém, a psicanálise pode
ser uma «disciplina inventada por um homem para poder viver com a sua parte
sombria», mas reconheçamos ao artista a concretização dos dois objectivos
principais: dinheiro e fama. A utilização abusiva de oximoros é típica de um
poeta, poeta é o que o putativo cientista nunca deixou de ser. Freud mente,
mente tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.
As ficções, a irracionalidade, as efabulações, a insensibilidade para com os
seus pacientes, os postulados, as contradições, são partes integrantes de uma
mesma criação: o mundo mágico de Freud. Não exclui o espiritismo do seu mundo
encantado, era supersticioso, para ele o fortuito não existia, «só há pura
necessidade mágica»:
A psicanálise é activada dentro da caverna platónica, ela
disserta sobre ideias, ela volta costas à verdade dos objectos do mundo. O seu
universo é um contra-mundo, um anti-mundo, um mundo invertido, um teatro no
qual os chapéus são pénis, as fechaduras vaginas, as caixas úteros, o dinheiro
matérias fecais, um dente que cai é um desejo de onanismo, a queda de cabelo
castração…
Em matéria de dinheiro podemos olhar para o divã de Freud
como olhamos para um penico e para Freud como quem olha para um coprófilo:
Freud manifesta um cinismo sem nome ao teorizar o seu
menosprezo pelo povo: primeiro, a análise é demasiado cara para os seus bolsos
vazios… Nem pensar em favores pecuniários pois, como se verá, pagar quantias
elevadas = pagar com a sua pessoa, e portanto assegurar a rapidez da cura! O
que não poderiam assegurar os operários, os mendigos, os desempregados, os
proletários, tanto mais que Freud subscreve a ideia comum de que os pobres,
obrigados a ganhar a sua vida, dispõem de menos tempo para incorrer na neurose!
Assim sendo, a psicanálise de Freud, no seu elitismo
declarado, recria não só a indigência enquanto terapia (daí, talvez, o fazer-se
pagar tão bem), como eleva o trabalho árduo à condição de via para a saúde
mental. Onde é que já ouvimos isto? Quem foi que nos disse que o trabalho
salvava? Para Freud, segundo Onfray, o trabalho tinha um lado lúdico, a função
de nos distrair de nós próprios e, por consequência, das maleitas que trazemos
dentro. É uma perspectiva razoável do problema, conquanto a razoabilidade possa
ela mesma ser já problemática. Do mesmo modo que também a cura mata, pode o trabalho
acelerar o sofrimento. Quanto a isso nada a fazer, contra isso nada a declarar.
Talvez a solução esteja em vestirmos camisolas amarelas e começarmos a
reivindicar nas ruas o direito à psicanálise, em nome dos nossos filhos, em
nome da liberdade, em nome de nós próprios, psicanálise grátis para todos, já!
2 comentários:
Boa. Sobre isso tinha tanto a dizer...há por aí tanto neo-freudiano a aplicar o paradigma ao neo-liberalismo...até dá para escrever um romance.
No mínimo, uma trilogia de 4. :-)
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