quarta-feira, 25 de maio de 2016

O MUNDO MÁGICO DE FREUD

A cerca de 150 páginas do fim, talvez não seja má ideia iniciar um inventário dos epítetos com que Michel Onfray brinda o pai da psicanálise no seu Anti-Freud (Objectiva, Outubro de 2012). Apoiando-se numa vasta bibliografia, Onfray começa por desmistificar a genealogia da psicanálise:

Pela leitura dos historiadores críticos, descobre-se por fim: que Freud organiza o mito da invenção genial e solitária da psicanálise quando ele, na verdade, foi um leitor voraz que se apropriou de numerosas teses de autores hoje desconhecidos, cujas descobertas são agora tomadas como suas; que Freud não inventou a psicanálise, palavra usada antes dele por Auguste Forel, pois, na verdade, Freud falava de psicoanálise…; que, ao invés da versão lendária e hagiográfica, existe uma genealogia histórica e livresca do pensamento de Sigmund Freud — mas que, ainda em vida dele até aos nossos dias, tudo foi feito para evitar uma leitura histórica da génese da sua obra, da produção dos seus conceitos, da genealogia da sua disciplina.

Em certo sentido, é precisamente isto que o filósofo francês propõe. Entenda-se plágio, no entanto, onde se fala de apropriação. A acusação é fundamentada, seguindo-se uma desmontagem do carácter de Freud que inclui acusações de egocentrismo, arrivismo e ambição desmesurada. Na sua origem, traumas de infância oferecidos por uma relação complexa com a mãe. Quem pretender encontrar aqui uma leitura psicanalizante do visado, sinta-se à vontade. Em suma:

Freud não é um cientista, não produziu nada de universal, a sua doutrina é uma criação existencial feita sob medida para viver com os seus fantasmas, as suas obsessões, o seu mundo interior atormentado e devastado pelo incesto.

Ou seja, a psicanálise esgota-se no caso Freud. O caso Freud é o único caso relevante para a compreensão da psicanálise. O que dizer, então, sobre o caso Freud? Que, no fundo e à superfície, ele é aquilo que se nega: um artista, na melhor das hipóteses um filósofo. Cientista é que não. Orgulhoso e megalómano, pretende dinheiro e celebridade, trai por diversas vezes o segredo profissional ao longo da sua carreira, adormece durante as sessões, é um homem de má fé, ambicioso, ganancioso, supersticioso e ingénuo, ciclotímico (sic), depressivo, angustiado e fóbico, cocainómano. O seu método:

Eis assim desmascarado o método de Freud: partir de si próprio, teorizar para a totalidade dos homens mas, ao fazê-lo, voltar a si próprio de onde, ao fim de contas, nunca saiu.

A crer na versão de Onfray, e não nos restam muitas razões para descrer, temos que pelo menos dar o benefício da dúvida. Dinheiro e fama foram objectivos alcançados. Quanto ao «Freud de má-fé, oportunista, invejoso, interessado, intratável, hesitante, seguro de si, ávido de sucesso, de notoriedade e de dinheiro, correndo atrás do reconhecimento universitário, neurótico, somático, crente na numerologia e no ocultismo», não está muito distante dos traços de personalidade que reconhecemos em inúmeros exemplares do vasto universo das pessoas geniais, as quais se caracterizam, precisamente, por tamanhas e tais excentricidades. Acontece que no caso de Freud a genialidade vem associada a obsessões que o impelem a deslocar para o domínio do científico matérias que consideraríamos mitológicas, adoptando como metodologia práticas que não podem senão ser tomadas como actualizações de um xamanismo ancestral. 
As conclusões a que chegou acerca dos seus casos mais mediáticos podem ser risíveis à luz de uma mente iluminista, mas são deveras inspiradoras de um ponto de vista metafórico e alegórico, são literárias no mais nobre dos sentidos, são pura arte. Freud pode não ter curado ninguém, a psicanálise pode ser uma «disciplina inventada por um homem para poder viver com a sua parte sombria», mas reconheçamos ao artista a concretização dos dois objectivos principais: dinheiro e fama. A utilização abusiva de oximoros é típica de um poeta, poeta é o que o putativo cientista nunca deixou de ser. Freud mente, mente tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente. As ficções, a irracionalidade, as efabulações, a insensibilidade para com os seus pacientes, os postulados, as contradições, são partes integrantes de uma mesma criação: o mundo mágico de Freud. Não exclui o espiritismo do seu mundo encantado, era supersticioso, para ele o fortuito não existia, «só há pura necessidade mágica»:

A psicanálise é activada dentro da caverna platónica, ela disserta sobre ideias, ela volta costas à verdade dos objectos do mundo. O seu universo é um contra-mundo, um anti-mundo, um mundo invertido, um teatro no qual os chapéus são pénis, as fechaduras vaginas, as caixas úteros, o dinheiro matérias fecais, um dente que cai é um desejo de onanismo, a queda de cabelo castração…

Em matéria de dinheiro podemos olhar para o divã de Freud como olhamos para um penico e para Freud como quem olha para um coprófilo:

Freud manifesta um cinismo sem nome ao teorizar o seu menosprezo pelo povo: primeiro, a análise é demasiado cara para os seus bolsos vazios… Nem pensar em favores pecuniários pois, como se verá, pagar quantias elevadas = pagar com a sua pessoa, e portanto assegurar a rapidez da cura! O que não poderiam assegurar os operários, os mendigos, os desempregados, os proletários, tanto mais que Freud subscreve a ideia comum de que os pobres, obrigados a ganhar a sua vida, dispõem de menos tempo para incorrer na neurose!


Assim sendo, a psicanálise de Freud, no seu elitismo declarado, recria não só a indigência enquanto terapia (daí, talvez, o fazer-se pagar tão bem), como eleva o trabalho árduo à condição de via para a saúde mental. Onde é que já ouvimos isto? Quem foi que nos disse que o trabalho salvava? Para Freud, segundo Onfray, o trabalho tinha um lado lúdico, a função de nos distrair de nós próprios e, por consequência, das maleitas que trazemos dentro. É uma perspectiva razoável do problema, conquanto a razoabilidade possa ela mesma ser já problemática. Do mesmo modo que também a cura mata, pode o trabalho acelerar o sofrimento. Quanto a isso nada a fazer, contra isso nada a declarar. Talvez a solução esteja em vestirmos camisolas amarelas e começarmos a reivindicar nas ruas o direito à psicanálise, em nome dos nossos filhos, em nome da liberdade, em nome de nós próprios, psicanálise grátis para todos, já!

2 comentários:

Claudia Sousa Dias disse...

Boa. Sobre isso tinha tanto a dizer...há por aí tanto neo-freudiano a aplicar o paradigma ao neo-liberalismo...até dá para escrever um romance.

hmbf disse...

No mínimo, uma trilogia de 4. :-)