quinta-feira, 16 de junho de 2016

PAPARAZZIZAÇÃO

Comecemos por recordar os cínicos, tal como Michel Onfray no-los apresenta: «Qual é o objectivo de Diógenes, de Crates e de Hiparquia? Acabar com a hipocrisia, a linguagem dupla, a moral moralista, o falso pudor, a dissimulação, a vergonha e outras variações sobre os temas, que se tornaram muito cristãos, da culpabilidade, da falta, do pecado, da recusa do corpo, do desprezo pela sensualidade e da aversão pela sexualidade. Não há nada de condenável num corpo sujeito à necessidade de alimento e de bebida. Então, porque é que, quando está dependente da pressão da libido, isso há-de ser um sinal de maldição, um traço de vergonha? A carne, os átomos, a matéria também são vítimas de desejos, de pulsões, de necessidades. A regra é satisfazê-los de uma forma tão desculpabilizada como o fazem os animais na natureza: a cultura pressupõe e propõe, segundo uma lógica ética, a obediência máxima às leis naturais. O materialismo equivale a uma lição cosmogónica na qual o bestiário serve de ensinamento eficaz, rápido e claro». Valeria a pena continuar a citação, mas isto é quanto chega para um depoimento assumidamente cínico. Desenganem-se, não emprego o termo com o significado que usualmente se lhe dá. Para mim, cínico é sinónimo de libertário. E o libertário que há em mim, sobretudo em questões de moral, recusa-se a olhar para um casal que pratica sexo em público com olhos de carrasco. 

Deixem-me partilhar convosco uma história pessoal. No verão passado arrisquei descer à Samoqueira do Rogil com a família e um casal de amigos, mais a respectiva prole. Foi um risco parvo. Não pelo que viemos a encontrar, mas pela descida íngreme e perigosa para alguém que carrega crianças menores de 10. Estavam na praia apenas um rapaz e uma rapariga, que depois de nós termos chegado se afastou alguns metros. Os possíveis, tendo em conta a parca extensão do areal. Enquanto descíamos a falésia e os vi, ocorreu-me o óbvio: vamos fazer de velas. Mas a meio do caminho não havia como desistir. Pois bem, façamos de velas. E assim foi. O rapaz e a rapariga afastaram-se e praticaram o amor a uma distância considerável do lugar onde estávamos, mas sendo-nos perfeitamente perceptível o que faziam e como o faziam. Impossível não olhar e não comentar, cabendo aos adultos atrair as atenções das crianças para o essencial: havia mar e rochas e areia à nossa volta, deixem lá os passarinhos. Tinha comigo uma boa máquina fotográfica, com excelente definição e um zoom capaz de registar a cena com os melhores pormenores. Como é óbvio, nem sequer me ocorreu tal possibilidade. Essas possibilidades normalmente só ocorrem a dois tipos de pessoas: aos grunhos e aos rebarbados. Como me tenho em boa conta, não me incluo em nenhum dos dois géneros. 

Vem isto na ressaca de um curioso debate acerca do casal filmado em Paredes de Coura a praticar relações sexuais. A minha primeira palavra é de total repúdio para com aqueles que filmaram a cena. Depois de ver o vídeo, impossível não ver o que nos atiram para cima, maior ainda é esse repúdio pelos comentários machistas e deploráveis dos herdeiros da tradição pidesca. Aposto que estavam de pau feito, a olhar para a mulher que sobre o homem trincava, comentavam eles, os lábios, enquanto lhe chamavam puta e cabra e sabe-se lá mais o quê que normalmente certos homens gostam de chamar a uma mulher quando a vêem foder. Nada sobre o macho, deitado sobre a relva, mãos atrás da cabeça, pés calçados, impávido e sereno. O trabalho era tão dela que ele poderá argumentar em tribunal ter sido violado. Portanto, o mal da cena recairá todo sobre a parte feminina. A postura passiva do elemento masculino está em consonância com o moralismo bacoco de quem olha para estas cenas com repúdio. 

Dito isto, a face chocante da cena é a presença de uma menor junto ao casal enquanto decorre o acto. Nenhum dos circundantes mostrou preocupação com o facto, limitaram-se a olhar e a filmar. Fosse uma cena de violência doméstica, talvez tivessem a mesma reacção. Filmariam. Estamos cada vez mais imersos numa sociedade para quem filmar é tudo quanto basta, filmar e divulgar nas redes sociais, filmar e mostrar ao mundo. A acção foi tomada de assalto pela reprodução, não interessa agir, importa filmar porque mais que o outro interessa a popularidade que aquele que filma granjeará com a partilha do documento. Quem assim actua não tem qualquer preocupação moral e não manifesta qualquer móbil ético. Caso contrário, esconderia das filmagens, pelo menos, a criança, protegê-la-ia de um universo infindo de depravados para quem o amor é mais vergonhoso do que a fome. 

Julgará talvez quem me leia que acho muito bem o sexo em público, mormente com crianças por perto. Julgará mal. Há configurações penais para tais actos que me parecem razoáveis, tendo em conta que o espaço público é de todos e nem todos estão na disposição de se sujeitarem a cenas de sexo alheio. Portanto, ainda que os cínicos tenham tido o seu tempo, parece-me cada vez mais importante retomar alguns dos seus ensinamentos. Isto porque com os avanços tecnológicos a não serem acompanhados por avanços culturais estamos a entrar num dia a dia perverso e perigoso, demasiado perigoso, o quotidiano da delação, da invasão de privacidade, de um total desrespeito pelo outro, com os valores morais subsumidos no pântano do populismo e do sensacionalismo mais acéfalos. 

Não estou com isto a advogar o direito à privacidade de um casal que faz sexo em público, o que seria por si só ridículo e em si mesmo uma contradição. Sobre esse casal pesará a justiça, presumo eu que com especial inclemência estando uma menor envolvida na cena. Estou a alertar para uma outra dimensão do problema, o de estarmos tendencialmente mais vulneráveis e sujeitos ao arbitrarismo dos grunhos e dos burgessos que por terem nas mãos uma coisa que filma se julgam juízes do mundo. Trata-se de uma espécie de “paparazzização” do mundo que, resumindo, é de todo menos saudável do que dar uma queca ao ar livre. Porque nos obriga a cuidados redobrados, obriga-nos a andar escondidos como só nas ditaduras era suposto andarmos.

1 comentário:

Claudia Sousa Dias disse...

E pensa a gente que está a evoluir...