Comecemos por recordar os cínicos, tal como Michel Onfray
no-los apresenta: «Qual é o objectivo de Diógenes, de Crates e de Hiparquia?
Acabar com a hipocrisia, a linguagem dupla, a moral moralista, o falso pudor, a
dissimulação, a vergonha e outras variações sobre os temas, que se tornaram
muito cristãos, da culpabilidade, da falta, do pecado, da recusa do corpo, do
desprezo pela sensualidade e da aversão pela sexualidade. Não há nada de
condenável num corpo sujeito à necessidade de alimento e de bebida. Então,
porque é que, quando está dependente da pressão da libido, isso há-de ser um sinal
de maldição, um traço de vergonha? A carne, os átomos, a matéria também são
vítimas de desejos, de pulsões, de necessidades. A regra é satisfazê-los de uma
forma tão desculpabilizada como o fazem os animais na natureza: a cultura
pressupõe e propõe, segundo uma lógica ética, a obediência máxima às leis
naturais. O materialismo equivale a uma lição cosmogónica na qual o bestiário
serve de ensinamento eficaz, rápido e claro». Valeria a pena continuar a
citação, mas isto é quanto chega para um depoimento assumidamente cínico.
Desenganem-se, não emprego o termo com o significado que usualmente se lhe dá.
Para mim, cínico é sinónimo de libertário. E o libertário que há em mim,
sobretudo em questões de moral, recusa-se a olhar para um casal que pratica
sexo em público com olhos de carrasco.
Deixem-me partilhar convosco uma
história pessoal. No verão passado arrisquei descer à Samoqueira do Rogil com a
família e um casal de amigos, mais a respectiva prole. Foi um risco parvo. Não
pelo que viemos a encontrar, mas pela descida íngreme e perigosa para alguém
que carrega crianças menores de 10. Estavam na praia apenas um rapaz e uma
rapariga, que depois de nós termos chegado se afastou alguns metros. Os
possíveis, tendo em conta a parca extensão do areal. Enquanto descíamos a
falésia e os vi, ocorreu-me o óbvio: vamos fazer de velas. Mas a meio do
caminho não havia como desistir. Pois bem, façamos de velas. E assim foi. O
rapaz e a rapariga afastaram-se e praticaram o amor a uma distância
considerável do lugar onde estávamos, mas sendo-nos perfeitamente perceptível o
que faziam e como o faziam. Impossível não olhar e não comentar, cabendo aos
adultos atrair as atenções das crianças para o essencial: havia mar e rochas e
areia à nossa volta, deixem lá os passarinhos. Tinha comigo uma boa máquina
fotográfica, com excelente definição e um zoom capaz de registar a cena com os
melhores pormenores. Como é óbvio, nem sequer me ocorreu tal possibilidade.
Essas possibilidades normalmente só ocorrem a dois tipos de pessoas: aos grunhos
e aos rebarbados. Como me tenho em boa conta, não me incluo em nenhum dos dois géneros.
Vem isto na ressaca de um curioso debate acerca do casal
filmado em Paredes de Coura a praticar relações sexuais. A minha primeira
palavra é de total repúdio para com aqueles que filmaram a cena. Depois de ver
o vídeo, impossível não ver o que nos atiram para cima, maior ainda é esse
repúdio pelos comentários machistas e deploráveis dos herdeiros da tradição
pidesca. Aposto que estavam de pau feito, a olhar para a mulher que sobre o
homem trincava, comentavam eles, os lábios, enquanto lhe chamavam puta e cabra e sabe-se lá mais o quê que normalmente certos homens gostam de chamar a uma mulher quando a vêem foder. Nada
sobre o macho, deitado sobre a relva, mãos atrás da cabeça, pés calçados,
impávido e sereno. O trabalho era tão dela que ele poderá argumentar em
tribunal ter sido violado. Portanto, o mal da cena recairá todo sobre a parte feminina.
A postura passiva do elemento masculino está em consonância com o moralismo
bacoco de quem olha para estas cenas com repúdio.
Dito isto, a face chocante da
cena é a presença de uma menor junto ao casal enquanto decorre o acto. Nenhum dos
circundantes mostrou preocupação com o facto, limitaram-se a olhar e a filmar. Fosse
uma cena de violência doméstica, talvez tivessem a mesma reacção. Filmariam. Estamos
cada vez mais imersos numa sociedade para quem filmar é tudo quanto basta,
filmar e divulgar nas redes sociais, filmar e mostrar ao mundo. A acção foi
tomada de assalto pela reprodução, não interessa agir, importa filmar porque
mais que o outro interessa a popularidade que aquele que filma granjeará com a
partilha do documento. Quem assim actua não tem qualquer preocupação moral e
não manifesta qualquer móbil ético. Caso contrário, esconderia das filmagens,
pelo menos, a criança, protegê-la-ia de um universo infindo de depravados para
quem o amor é mais vergonhoso do que a fome.
Julgará talvez quem me leia que acho
muito bem o sexo em público, mormente com crianças por perto. Julgará mal. Há
configurações penais para tais actos que me parecem razoáveis, tendo em conta
que o espaço público é de todos e nem todos estão na disposição de se
sujeitarem a cenas de sexo alheio. Portanto, ainda que os cínicos tenham tido o
seu tempo, parece-me cada vez mais importante retomar alguns dos seus
ensinamentos. Isto porque com os avanços tecnológicos a não serem acompanhados
por avanços culturais estamos a entrar num dia a dia perverso e perigoso,
demasiado perigoso, o quotidiano da delação, da invasão de privacidade, de um
total desrespeito pelo outro, com os valores morais subsumidos no pântano do
populismo e do sensacionalismo mais acéfalos.
Não estou com isto a advogar o
direito à privacidade de um casal que faz sexo em público, o que seria por si
só ridículo e em si mesmo uma contradição. Sobre esse casal pesará a justiça,
presumo eu que com especial inclemência estando uma menor envolvida na cena. Estou
a alertar para uma outra dimensão do problema, o de estarmos tendencialmente
mais vulneráveis e sujeitos ao arbitrarismo dos grunhos e dos burgessos que por
terem nas mãos uma coisa que filma se julgam juízes do mundo. Trata-se de uma
espécie de “paparazzização” do mundo que, resumindo, é de todo menos saudável
do que dar uma queca ao ar livre. Porque nos obriga a cuidados redobrados, obriga-nos a andar escondidos como só nas ditaduras era suposto andarmos.
1 comentário:
E pensa a gente que está a evoluir...
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