sexta-feira, 17 de junho de 2016

MINHAS LEMBRANÇAS DE LEMINSKI

Minhas lembranças de Leminski (Geração, Março de 2014), de Domingos Pellegrini (n. 1949), nasceu envolto em polémica. Nas badanas da edição impressa dá-se conta do facto. Convidado a escrever uma biografia de Paulo Leminski (n. 1944 – m. 1989), de quem fora amigo próximo, Pellegrini recebe das herdeiras do autor de Catatau (1975) um silêncio que o próprio considerará censório. Alice Ruiz (n. 1946), ex-mulher e mãe de três filhos de Leminski, opor-se-á à publicação de parte do conteúdo do livro em e-mail tornado público: «(…) não poderemos autorizar a publicação das imagens nem a publicação dos inúmeros textos dele». As razões são de diversa ordem, mas têm sobretudo em conta um retrato nada lisonjeiro do homem por detrás do poeta. Uma primeira publicação do livro surgirá, então, na primavera de 2013 em versão on-line. Lançado primeiramente na internet, o livro contribuirá para uma discussão acesa sobre liberdade de expressão, direito à privacidade, natureza das biografias… Independentemente do valor reconhecível, ou não, em cada um dos argumentos, certo é que a matéria se tornou pública, o livro teve a sua publicidade e Pellegrini acabou por levar a sua avante. Nada a opor. Contudo, e nestas coisas há sempre um porém a enguiçar o pensamento, são igualmente compreensíveis as preocupações dos herdeiros (dito assim, parece haver sobre quem fica uma mera responsabilidade jurídica sobre um espólio). Essas preocupações têm sobretudo que ver com a sobreposição do caricato ao essencial, ou seja, ainda que reconhecendo nestas memórias uma intenção testemunhal, mais do que biográfica, importaria não sobrecarregar o texto com aspectos meramente caricaturais da personagem leminskiana. O autor defende-se chamando a atenção para um mito começado a ser engendrado pelo próprio Polaco (alcunha de Paulo Leminski), um mito fundado numa intencionalidade lógica e calculista que reduzem o poeta à condição de esteta. É uma interpretação legítima, embora impossível de ser contraditada pelo visado e, nesse sentido, também legitimamente contraditável por quem lhe ficará para sempre ligado em sangue e memória. Esta é, para todos os efeitos, a dimensão ambivalente de uma obra deste género, até porque Domingos Pellegrini não se propôs escrever uma biografia do poeta curitibano, mas sim um retrato testemunhal de uma relação entre dois amigos que nem sempre estiveram de acordo quanto a temas estéticos, éticos e posturas vivenciais. De resto, sobre o poeta nada de novo: mistura de cultura popular com erudição, delírio existencial no convívio com um domínio lógico do pensamento que permite as mais extravagantes associações linguísticas, culto do absurdo e da concisão zen, humor, ironia, sentido lúdico da palavra e, em suma, da própria vida: «Poeta, para ser bom, tem de sofrer, escreveu Vinicius, mas sofrimento na vida a gente não precisa pedir nem esperar, vem e acontece como chuva chove, enquanto alegria é roupa que se veste como se despe por querer» (p. 19-20). O lado caricatural é o de um Leminski alcoólico, desleixado e laxista, inábil para os afazeres quotidianos, pouco higiénico, descuidado, frugal e desapegado, é o poeta monge, o poeta zen, a par do homem «beberrão, fumante, dispersivo», com os dentes estragados e «sono a qualquer hora», adoptando «como norma evitar banho». São imagens que se repetem assiduamente ao longo de 200 páginas repletas de citações e envios para os textos do próprio Leminski, aqui e acolá polvilhadas com anedotas pessoais e explosões de uma comoção que torna o texto, mesmo quando menos simpático, humanamente compreensível. Mas falha, falha precisamente por não haver nele um distanciamento racional que permitisse um maior aprofundamento de ideias fundamentais (a de poesia enquanto inutensílio, a título de exemplo) anteriores a um calculismo populista que Pellegrini sugere por demais vezes sem ter em conta que um poeta é, ainda mais neste nosso mundo de internéticas efabulações, esse todo onde se misturam obra escrita, palavra passada e imagem projectada. A dimensão que uns e outros mais valorizam é subjectiva, conquanto em todas elas habitem exemplos de liberdade e de loucura que tornam a poesia extra-ordinária aos olhos do mundo:

«Há quem diga que, se eu não me houvesse bilistruído, ah, talvez ainda escrevesse tanto, ganharia os prémios que nunca ganhei, receberia reconhecimento até da Academia (claro que quando chegasse aos noventa no mínimo, ou, com certeza, quando passasse dos cem), e daria entrevistas para turmas de colegiais no jardim de casa, respondendo sempre daonde vem a inspiração,
   e seria convidado para mesas-redondas com poetas quadrados, a maturidade me refreando o ímpeto de mandar tudo para o parnaso que os pariu; com vontade de, levantando num pulo, embora talvez com bengala, dizer não sei daonde vem a inspiração nem para onde vai o tesão de leão de zoológico, quero é saber cadê o meu cachê, e perguntar por que, em vez de mesa-redonda, não me convidam para uma cama- redonda,»


Palavra do poeta. Do homem dentro do poeta. Do homem-poeta-homem. Palavra de Leminski.

1 comentário:

Evandro disse...

Em tempos de curitibanos reacionários e golpistas, ser avesso a banhos é coisinha de nada, tutaméia, ossos de borboleta