Ouvi falar de José Martins Garcia (n. 1941 – m. 2002) por
culpa da colaboração entre o autor e o editor Fernando Ribeiro de Mello (n.
1941 – m. 1992), colaboração da qual resultaram não apenas alguns livros publicados nas edições Afrodite (referi-me a um deles aqui), mas também
um trabalho de conselho editorial cuja relevância pode ser apreciada no imprescindível Editor Contra. Concentremo-nos no autor. É um mistério por decifrar o
esquecimento abatido sobra a sua obra, vasta e heteróclita, distribuída por
vários géneros e de uma riqueza linguística inquestionável. Num país com
evidentes limitações literárias, só podemos considerar tamanha desatenção um
inenarrável desperdício. Mesmo compreendendo o carácter de urgência com que se
editam e reeditam balelas a troco de microssucessos comerciais, varrerem-se das
estantes autores com características até supostamente apetecíveis para os
padrões correntes só pode ter uma explicação: estupidez. Saúde-se, por isso, a
iniciativa da Companhia das Ilhas, pequena e isolada experiência editorial
entre tubarões esfaimados, por trazer de novo à mão de semear uma obra que não
pode, não deve, não tem que cair no esquecimento. E, já agora, pela ambição
colocada no projecto de editar até 2020 tudo o que de mais relevante José
Martins Garcia escreveu em matéria de ficção, teatro e poesia. Seria no mínimo
exigível que a boa consciência do jornalismo cultural oferecesse a este
projecto a visibilidade que ele merece, fazendo desta atitude um exemplo de
obstinação em defesa de uma literatura portuguesa que não se resume ao que a
indústria dos livros promove atirando-se aos olhos de leitores para quem o
mundo vem resumido nas páginas dos suplementos. 750 exemplares são quanto foi
possível para esta 1.ª reedição de Lugar de Massacre (Maio de 2016),
originalmente publicado em 1975. Que bom seria que esgotassem rapidamente, sinal
de alerta para quem julga os leitores adormecidos e deles tem a ideia de
sonâmbulos facilmente manipuláveis com truques de hipnotismo. Quem me leia, vá
por mim que não se arrependerá. Lugar de Massacre é um dos melhores romances em
língua portuguesa, vindos a lume no séc. XX, que tive oportunidade de ler. 160
breves páginas de uma intensidade e de um fulgor impressionantes, com a Guerra Colonial Portuguesa em pano de fundo mas sobre muito mais do que essa experiência traumática. Diz-se em nota
biográfica: «Chamado a cumprir serviço militar, em 1965, foi mobilizado para a
Guiné, aí permanecendo de 1966 a 1968, experiência que se projecta em Lugar de
Massacre (1975), um dos primeiros romances portugueses a abordar a guerra em
África, incluído por Rui de Azevedo Teixeira no grupo dos oito romances
obrigatórios, canónicos, da literatura da Guerra Colonial». Pode parecer retórica publicitária, mas mesmo que seja são justíssimas as palavras.
Desenganem-se, porém, aqueles que esperarem da narrativa um testemunho pessoal,
biográfico ou confessional, desenganem-se também os que pretenderem leituras
políticas engajadas e vinculadas a esta ou àquela tendência. O tom é de sátira
e balanceia, nas suas duas partes, entre a pura comédia e o trágico à moda
clássica, deixando-nos emocionalmente ambivalentes se formos, como eu fui,
desprevenidos para a leitura. Rapidamente saltamos do riso para a raiva, do
caricato para o indignado, do ridículo para a revolta, perpassando por todas as
personagens e nas situações em que se envolvem (algumas dignas de constarem
numa antologia do melhor humor português) um ar de loucura e de alienação que
nos transportará de facto para a demência como se estivéssemos a fazer a viagem
de Conrad que serviu de inspiração para o Apocalypse Now. Vietname à
portuguesa, a Guiné deste livro é um lugar de massacre, sobretudo, da
consciência e da lucidez, massacre de vidas físicas, de existências, mas de
sonhos e de ideais, de crenças e até de lugares-comuns. Um lugar que nos
deixará aos berros com a mais central das suas personagens, um intelectual das
letras entregue ao álcool e à deriva pelos matagais do delírio: «—
Se o humano é a vossa merda, recuso esse humano. Acabou-se!» Mas até chegarmos
aqui teremos de aguentar os tormentos mesquinhos de um snob, a avidez dos mosquitos,
reaccionários intriguistas, veteranos obesos, bacanais de homossexualidade em
aquartelamentos que mais se parecem com saunas, europeus selvagens em missão
civilizadora, condes, viscondes, barões e outros que tais de uma monarquia
oportunista, discursos pastosos que caem tão dignamente nos tempos que
correm: «Um dos piores defeitos da nossa colonização é o anacronismo.
Transpõem-se para os colonizados valores caídos em desuso. Nesse aspecto, a
cultura é como a maquinaria: só se vende aos subdesenvolvidos a tralha que
deixou de dar lucro. Quando derem a estes gajos uma fábrica de armamento, é porque
já foi inventada, para os deuses, uma forma superior de destruição, o armamento
fluido, o raio da morte. Quando os civilizados deixam de ligar à moral de
entrepernas, a moral de entrepernas é exportada para outras latitudes. Isto é o
mundo que a Europa criou. A Europa e o seu falso pudor…» (p. 44) Nada disto é
de ontem, cada palavra mantém um interesse histórico que a faz valer enquanto
retrato cultural. Ontem colonos, hoje colonizados, pouco importa. O que
interessa é a mecânica do processo, a hipocrisia enquanto óleo de uma máquina
velha, a rebentar de podre, deixando no desespero os operários enquanto no alto
dos gabinetes marionetistas se entretêm com jogadas de argumentação e póqueres
milibilionários. Entrementes, o desabafo doloroso:
— Por que não desertaste? — interveio Miguel.
— Também gostava de saber… Falta de contactos, talvez. Não, não
desertei porque não tenho qualquer ideologia. Os cépticos radicais não podem
optar. E deixam-se utilizar pelo poder. E gastam tempo a compreender isso… Só
depois do jogo jogado é que medem a extensão da asneira.
Imperdível.
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