terça-feira, 16 de agosto de 2016

ADMONIÇÃO AOS IMPERTINENTES

Eu desejo estar só. Não busco companhia.
Quero só o silêncio. Não me agrada murmúrio
nenhum à minha beira. E se a voz subterrânea
da canção se aproxima, que me chegue em surdina: 
se é canção ruidosa, com a mudez a insulto;
se trouxer muita música, que no Hades se tanja
ou em qualquer região do negro Hades vizinha...
Ruído: cala-te! Pregão de aziago augúrio!
Eu desejo estar só. Não busco companhia.
Quero gozar silêncio, minha única iguaria.

Se sou o Solitário,
se sou o Taciturno,
deixai-me só.

Se sou o Obscuro, o Arbitrário,
se sou o Lucífugo, o Nocturno,
deixai-me só.

Minha sandália (minha alpercata ou meu coturno)
não os piseis, tumulto tumultuário,
deixai-me só.

Judeu, quíchua, orangotango, ariano,
— porque sou da estirpe de Saturno 
deixai-me só.

Decanto em meu recanto o menor canto,
silencioso; alquimista sou sem igual,
jogral oculto, fabulador abscôndito.
Deixai-me só.

Bom provador (sob um mísero manto)
Bom tangedor (sem Amati ou Guarneri)
Alto cantor (porém baixo cantante)
Deixai-me só.

Deixai-me só. Não quero companhia.
Deixai-me ser esquivo. Eu não gosto de coros.
Não temais: não presumo de Orfeu
encantador de ferozes animais.

Deixai-me só soprando a minha cana
silvestre. Não me agrada o ronronar pueril.
Não sou efeminado. Não sou pagem de damas.
Sou áspero, másculo, Sou rude, sem lamentações.

Sem queixas. Mais mudo que Beethoven surdo.
Sem louvores. Mais canhoto do que Cervantes coxo.
Sem pathos. Mais magro do que Falstaff gordo.
Solitário. Adusto. Sou o único a bordo.
Espírito a negro. Coração a branco.

E deixai-me ser esquivo. Sou arrancador de notas
do meu cravo. Sou bordador de fábulas
sobre o canhamaço do meu pentacórdio.
Urdidor de facécias. Por dentro me estanco.
Deixai-me ser único. Jamais transbordo.

Se sou o Solitário,
se sou o Taciturno,
se sou o Obscuro, o Arbitrário,
se sou o Lucífugo, o Nocturno,
deixai-me só.

Se sou o Atrabiliário,
se sou Sérgio, o Lobo da estepe,
se já tenho o Corvo e o Abutre
dos acerbos cruéis descendentes de Saturno,
deixai-me só. 

Deixai-me só. Não quero companhia.
Deixai-me ser esquivo. Eu não gosto de coros.
Não temais. Não presumo de Orfeu
encantador de ferozes animais.

Nem ela vem a mim, nem eu vou à montanha
Nem vassalo nem César, nem Juiz nem Réu:
Sérgio, o Lobo da estepe, o Atrabiliário Leo.
Com o meu tonel. Da minha cruz cireneu.
Rei de Troças, soberbo: ceptro ou cana
o mesmo são para a minha intratável altivez.
Deixai-me só.


León de Greiff (n. 22 de Julho de 1895, Medellín, Colômbia - m. 11 de Julho de 1976, Bogotá, Colômbia), in Troco a Minha Vida por Candeeiros Velhos, selecção de Hjalmar de Greiff, prefácio de Jerónimo Pizarro, tradução de Gastão Cruz, Abysmo, Novembro de 2014, pp. 93-95.

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