Decorrida a primeira metade de 2016, podemos afirmar, com o meu amigo Luís Germano Fonseca, que anda metade do mundo a jogar Pokémon
Go e a outra metade a chacinar-se. Às notícias de atentados terroristas vindas
dos quatro cantos do mundo, devemos juntar as vítimas de uma loucura que
mata indiscriminadamente. Na América de Walt Whitman, a corrida ao poder
disputa-se entre um racista e uma democrata, a primeira mulher candidata à Casa
Branca, sobre a qual recaem imensas dúvidas de idoneidade. A escolha deverá ser
entre o menos mau, tendência que se confirma por todo o lado onde se faça
política. Mas a opção pelo menos mau tem vindo a afirmar-se não apenas no
território político, estendendo-se à vida prática dos cidadãos e
disseminando-se por uma consciência cujos escudos se vão fragilizando à medida
que o poder de reflexão se esgota no entretenimento, os valores perdem estatuto
referencial, a capacidade de decisão se vê diminuída pela ausência de
referências e de convicções que garantam a força da posição. O menos mau é a lei,
o recurso, a arma do pobre de espírito, o tal de quem será o reino dos céus
enquanto na terra for possível ir penando.
A febre em torno de um jogo como o Pokémon Go revela só
a dimensão hilariante deste status quo, colocando a claro a infantilização do
tecido social e uma espécie de alienação colectiva capaz de fazer de um não
assunto a matéria mais importante das nossas vidas. Não é, porém, ingénua, nem
sequer inofensiva, a histeria gerada pelo assunto, ela advém de um esgotamento
que tem na sua origem práticas sociais doentias, como sejam, por exemplo, a de
hoje se julgar que um menino de dez anos sem um smartphone nas mãos é vítima de
exclusão social. As tecnologias são, pois, um factor de integração que pesa na
cabeça da generalidade das famílias, as quais se recusam a que os seus filhos
sejam menos pós-humanos do que os filhos dos outros, ou seja, menos nerds. Nerd,
neste contexto, significa viciado em apps (vulgo aplicações). É assim em meio
mundo, a tal metade que consegue entreter-se a caçar Pokémons e perturbar-se instantaneamente com a execução de uma mulher em plena praça
pública porque não circulava com a cara tapada. Refira-se, já agora, que
enquanto era executada, uma horda de bestas a que temos por hábito chamar de
humanos registava para memória futura a execução com os devidos smartphones
erguidos ao alto.
Tudo se filma, tudo se regista, os neurónios que temos na
cabeça podem sobreviver relaxados, temos para substituição a memória inesgotável dos
gadgets. Emoções e sensações são vivenciadas à velocidade da luz, instantaneamente, que é como
quem diz: ganham a potência do efémero, do prático, do somente útil, daquilo que passa rápido para que doa
menos e não fira, lá está, a consciência, esse terreno raso onde a indignação
já não medra senão como erva daninha e a inteligência pode ser canalizada para
objectivos tão determinantes quanto os das empresas onde estamos empregados. O
caminho que escolhemos trouxe-nos aqui, a uma paisagem deveras diferente
daquela que Henry David Thoreau registou em Maçãs Silvestres & Cores de
Outono (Antígona, Junho de 2016). É um exercício especulativo interessante,
este de imaginar o que sentiria um homem como Thoreau num tempo como o nosso.
As palavras que nos deixou ecoam de uma época histórica em que tudo isto estava a
germinar. Tudo isto é a industrialização do mundo e consequente desapego da
Natureza, o extermínio declarado do homem telúrico e a emergência paulatina do
homem virtual.
Luís Leitão relembra no prefácio que os dois ensaios coligidos neste belo volume se inserem num género literário a que chamamos Nature writing,
cultivados nos Estados Unidos da América do Norte por autores para quem a
filosofia era inseparável de uma contemplação da Natureza enquanto palco de
toda a existência humana. Em Maçãs Silvestres ensaia-se um elogio desse fruto
que nasce naturalmente nos campos sem carecer de cuidados humanos, o mais belo
dos frutos pela sua resistência e, lá está, pela sua natureza selvagem. Seria um
mero ensaio sobre maçãs não se colocasse aqui o fruto num lugar de rivalidade
com a independência e a iniciativa do homem. A partir da observação da maçã
silvestre, Thoreau delineia uma crítica do homem sedentário, exactamente o
mesmo que, hoje em dia, amolecido pela dependência do tecnológico necessita de
um jogo palerma para ser estimulado a sair de casa, andar nas ruas, caminhar, ainda que o faça com os olhos postos no ecrã de um telemóvel e sem a mínima
atenção ou interesse pelo que o rodeia. Ainda que caminhe sem, na realidade, caminhar.
Acrescente-se: «Todo o arbusto de
macieira silvestre, de certo modo como todas as crianças selvagens, estimula as
nossas expectativas. Talvez seja um príncipe disfarçado. Que lição para o
homem! Assim os seres humanos, remetidos ao mais alto nível, são o fruto
celestial que sugerem e aspiram a produzir, servindo de alimento ao destino; e
apenas o génio mais persistente e mais forte se defende e se impõe, lança
finalmente no ar um tenro rebento, e deixa cair o seu fruto perfeito sobre a
terra ingrata. De igual modo, os poetas, os filósofos e os estadistas brotam
nas pastagens do país e sobrevivem às hostes de homens sem originalidade» (pp. 52-53).
Num texto datado do século XIX, a citação mereceria por si só um tratado. O que
resta hoje entre nós de crianças selvagens? O que nos resta de Terra onde
possam crianças e homens redescobrir a sua originalidade? O que resta de ar
livre nas vidas padronizadas dos servidores, dos cidadãos, como se diz, de
plenos direitos, dos eleitores amestrados, dos desenrascados sobreviventes
enfraquecidos pela domesticidade, o que resta de selvagem no nosso paladar que
nos permita apreciar um fruto selvagem? Fechados em casa a ver televisão, a
navegar na rede, a distribuir sorrisos e likes e bonecada pelo mundo
cibernético, temos o Pokémon para nos salvar. Ele diz Go e nós vamos, mesmo que
amestrados como um cão, pela trela, submissos, com as mãos e os olhos presos ao
salvador das nossas débeis consciências: o telemóvel, o tablet, o computador, o smartphone. Há lá espécies mais selvagens do que tais instrumentos?
É um risco, porém, que corremos, reduzindo a existência
a tão protectora, asséptica e higienizada selva, é um risco que aceitamos ao
penetrar na floresta insípida e inodora de bytes e megabytes… Perdemos as cores
às coisas, perdemos os aromas, perdemos a textura, escapam-nos as Cores de Outono. A citação escolhida para contracapa
é reveladora: «A beleza e a verdadeira riqueza são sempre assim, baratas e
desprezadas. O paraíso poderia ser definido como o lugar que os homens evitam»
(p. 98). Estranha definição de paraíso, já não o lugar de onde os homens foram
expulsos, já não o lugar que os homens almejam, mas o lugar que os homens
evitam. Por que será que os homens evitam o paraíso? Podemos supor inúmeras
respostas para esta questão, aceitando como verdadeira a premissa que a dúvida sugere. Evitá-lo-ão porque ele, o paraíso, é um lugar de verdade. E os homens
odeiam a verdade. Dêem-lhes uma mentira consoladora que eles jamais aceitarão
uma verdade inquietante. A verdade desassossega, a mentira aquieta. Os homens
fogem do paraíso porque o paraíso exige cuidados, dá um certo trabalho, é incómodo, e os homens não têm
tempo senão para si próprios, para o inferno que trazem dentro de si próprios.
O inferno são os outros, dizia, mais ou menos, Sartre, entendendo-se nesse
dizer o que Heidegger, por sua vez, acrescentava, que os outros não são todos
os demais além de mim, mas também aqueles entre os quais eu próprio me incluo. Nem que seja no Facebook.
O paraíso, então. À nossa espera no céu ou aqui na Terra? Quiçá num alegre acampamento de peles vermelhas antes de lá
terem chegado os cobradores de dízimos. Não se trata do paraíso perdido,
trata-se de um paraíso na terra, lugar que os olhos apenas enxergarão descolando-se das distracções diárias para se concentrarem na paisagem que lhes
escapa. O caminhante sabe de que paraíso fala Thoreau, o caminhante conhece a
diversidade de beleza que matiza vales e colinas, falésias e montanhas, serras
e florestas… O que sobra das constatações é produto da dedução, cada qual faça
as suas, de preferência com a consciência à solta, algo difícil de
esperar, até improvável, mas não percamos a esperança: «Mostrem-me duas aldeias, uma envolta em árvores e
cintilante com todas as glórias de Outubro, e a outra tão-só um vulgar baldio
desprovido de árvores, com excepção de uma ou duas para os suicidas, e estou
certo de que nesta última encontraremos os beatos mais esfaimados e fanáticos e
os bebedores mais desesperados. Estarão à vista todas as selhas, todas as
vasilhas de leite e todas as lápides funerárias. Os habitantes desaparecerão
bruscamente por detrás dos seus celeiros e das suas casas, como os árabes do
deserto por entre as suas rochas, e olharei para ver se trazem lanças. Estarão dispostos
a aceitar a doutrina mais estéril e desesperada — como o mundo estar a
aproximar-se velozmente do seu fim, ou já lá ter chegado, ou eles próprios
estarem com o lado errado voltado para fora. Talvez façam estalar as suas
articulações secas umas contra as outras e chamem a isso uma comunicação
espiritual» (pp. 135-136). E pronto, está visto.
Sem comentários:
Enviar um comentário