Brasil, década de 1970. O país vivia debaixo de uma
ditadura militar, fortalecida com a promulgação do chamado AI-5 em 1968.
Arrecadando na gaveta a Constituição de 1967, o documento suspendia garantias constitucionais instaurando a repressão e a censura,
perseguindo todos quantos se opusessem ao regime, incluindo artistas,
jornalistas, intelectuais. Raduan Nassar (n. 1935), filho de emigrantes libaneses,
terá escrito por essa altura (1970?) Um Copo de Cólera. A novela, que para
todos os efeitos consideraremos aqui um conto que não chega a romance por
motivos de extensão, viria a conhecer uma primeira edição em 1978. O autor tinha
estudado Direito e Letras, Filosofia, Sociologia… Concluiu Filosofia em 1963,
viajando até à Alemanha, onde ficou a saber do golpe militar de 1964, passando
pelo Líbano para conhecer a aldeia onde os pais haviam nascido, regressando
posteriormente a São Paulo. Tudo o que biograficamente se sabe acerca de Nassar
contribui para uma ideia algo mítica deste escritor diferente de todos os
outros, criador de coelhos com parca obra publicada, desinteressado da escrita,
afastado do meio, recolhido no mundo rural como uma espécie de exilado. Uma espécie.
Um
romance, uma novela e uma colectânea de contos é tudo quanto dele se conhece
publicado. Esta mais recente edição de Um Copo de Cólera (Companhia das Letras,
Junho de 2016) aparece já com o anúncio, em selo e cinta, da atribuição do
Prémio Camões 2016, provavelmente o mais relevante atribuído a um autor de
língua portuguesa. Três livros… garantiram a Nassar o reconhecimento dos pares.
Ia dizer três simples livros, mas travei a tempo. Um Copo de Cólera nada tem de
simples. Parece escrito de um jorro, mas a gente chega ao fim e quer ler
novamente porque algo deve ter escapado. E escapou, escapa sempre. A sensação é a de que sempre alguma coisa ficou por apanhar, uma alusão,
uma metáfora, um envio. No entanto, nada tem de metafórico ou alegórico um livro
assim. No fundo, tudo o que ali se passa em termos psicológicos é pessoano, como a páginas tantas se entrevê num apontamento singelo: «eu só
fingia, a exemplo, a dor que realmente me doía» (p. 56). Mas fica ridículo trazer Pessoa à liça, porque nesta prosa nada do que se diz é ambíguo
em si mesmo, os paradoxos não advêm de um exercício da linguagem como se erguem
na sombra do pensamento.
Nos cinco brevíssimos capítulos iniciais, o ambiente
de sensualidade erótica armadilha-nos a leitura. Fomos caçados, capturados
vivos, o que se segue será a experiência do urso preso na armadilha, a querer
soltar-se de um jogo retórico, quase de tipo platónico, acrescido de uma
violência psicológica expressada sem pontos finais, entre um homem a quem
saltou a tampa, por assim dizer, e uma mulher sem tento na língua. Tudo por
causa de um carreiro de formigas. As especulações são legítimas, mas
deveras desinteressantes face à experiência da leitura. Entre o homem e a
mulher que se digladiam há uma pressão, um copo cheio na iminência de
extravasar, percebemos que qualquer coisa pode ali soltar a raiva do exilado
contra a amante jornalista num tempo em que, julgamos agora, a pressão externa
exercida lograva também assim os seus objectivos, metendo uns contra os outros
todos quantos estavam do mesmo lado oposto ao dos agentes de pressão. É uma
velha sina.
Na prosa de Raduan Nassar ficam implícitas tais alusões. O homem
exilado no seu "castelo" rural, afastado da metrópole onde as revoluções se
exercem, não parece fugido de nada. A ser refugiado de alguma coisa ele será
refugiado de si mesmo. O desprezo que declara relativamente aos intelectuais que
“tagarelam democraticamente com gente do povo” como se fossem, como se
soubessem, como se tivessem por decreto ou artes mágicas o saber das motivações
desse mesmo povo, é um desprezo projectado na amante que em confronto directo
leva a cólera a borbulhar já sem o domínio da inteligência, tudo recalcamentos vindo
à toda, as estribeiras perdidas e o desprezo à deriva numa discussão onde o mínimo serve para ferir o outro mesmo que, caída a raiva sobre aos joelhos da
sobriedade, não fosse essa a intenção.
O texto resulta, deste modo,
como exorcismo, desabafo, quiçá, sem peias, a declaração de princípio daquele
que sobre si mesmo afirma: «já disse que a margem foi um dia meu tormento, a
margem agora é a minha graça» (p. 82). Mas tem um preço a pagar, há sempre um preço a pagar pela margem. Duelo não só de um homem com sua amante,
mas de um homem consigo mesmo, imerso num mar de decisões sem certezas,
convicções repletas de dúvidas, opções cuja ordem final é a consciência de uma
impotência total face ao estado desastroso do mundo. A rebentar pelas costuras
por causa de um bando de formigas e da sua odiosa organização metódica, a sensualidade é aqui apenas e tão-só um aperitivo para a violência.
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