O mais recente livro de Paulo José Miranda (n. 1965)
começa por atrair atenções pelo aspecto invulgar. Despido de adereços, não tem capa nem contracapa, não tem sequer folhas de guarda e de rosto, em nenhum
lugar aparece referência ao editor (Abysmo) ou aos usuais créditos, data
de edição, gráfica, ISBN... Temos apenas o essencial, alguns cadernos cozidos
por onde se distribuem 61 poemas, o nome do autor na base das folhas, a paginação
e um título: Auto-Retratos.
Falámos de aspecto como quem se refere à
superfície, havendo neste caso uma rescisão da mesma. O livro mergulha
directamente, como também referimos, no essencial. E o essencial são os poemas,
sequência de 61 fragmentos organizados sob uma designação comum que é bem
definidora do que aqui se apresenta. Os auto-retratos desenhados por Paulo José
Miranda resultam de um esforço reflexivo em torno do exercício da palavra,
neles a imagem projecta-se a partir do significado que atribuímos aos vocábulos enquanto representações do mundo. Daí que os rasgos metafóricos que perturbam a retórica acerca do essencial surjam como via de acesso ao sentido das
palavras.
Verifica-se este mesmo processo logo no primeiro poema, onde o «coração que
se ajoelhe junto à existência de outro» enunciado no segundo verso é um
pré-anúncio da relação entre autor e leitor evocada na última estrofe: «haverá
ainda / haverá pouco / quem encontre nos escombros de um livro / o seu rosto
nas mãos de outro». Pressupõe-se nesta relação uma espécie de partilha, o livro
enquanto reflexo que aproxima o Eu do autor do Eu do leitor, ambos um Outro que
o poema retrata. Só neste sentido o poema é um auto-retrato, no sentido em que é igualmente um hetero-retrato, pois não propõe tanto uma sublimação do Eu como
tenta reflectir o que aproxima os vários eus, indo ao encontro do essencial, ou
seja, da natureza humana aqui entendida a partir de premissas de carácter existencial:
auto-retrato 17
um dia dás por ti e estás vivo
ris aqui e ali e por vezes choras
pensas que acreditas em alguma coisa
e depois também decides que já é hora de isso acabar
jogas apenas a mão aos frutos da época
ao fim da tarde no meio das árvores altas e húmidas
carregadas de mais vida do que podes enunciar
suspeitas de que não entendes nada
ajoelhas-te junto ao infinito do universo
e depois muito tarde
embora talvez cedo de mais para ti
morres
Sublinhe-se que a segunda pessoa a quem o poema supostamente
se dirige é uma segunda pessoa indefinida, a universalidade do retrato aceita
pois o auto e o hetero enquanto testemunhas de uma natureza humana que é, para
todos os efeitos, o que aqui se pretende retratar. O que há em todos de um só,
o que há num só de todos, é a pertença a um absoluto que agrega as
individualidades, as quais na sua divergência material e espiritual convergem
para uma mesma essencialidade primária.
Por estas razões, Paulo José Miranda é
talvez entre os poetas portugueses contemporâneos aquele que mais ligações
estabelece com uma noção clássica de poesia, a poesia entendida em termos
filosóficos, tentativa de compreensão do mundo reforçada pela sua inerente
capacidade de gerar mundos. Os poemas acolhem as circunstâncias que mapeiam a
existência, aceitam fogachos quotidianos, convocam recursos típicos da
argumentação filosófica, como sejam o aforismo silogístico ou mesmo o axioma,
projectam uma tensão permanente entre a vida e a morte, deus e o humano, erguem-se
sobre esses mesmos pilares à laia de reflexões onde a velhice, a solidão e o
medo têm lugar, não excluindo o que de lírico ainda pode ser expressado a partir de uma concepção moderna de poético:
auto-retrato 26
por favor
dêem-me
migalhas de possíveis
montanhas pulverizadas com um olhar
com a mudança de um olhar
mãos de onde nascem rios subterrâneos e uma alegria
pueril de lava
domesticando o terrível indomesticável
flores rochas em brasa iluminando o universo
animais microscópicos dando formas à consciência
territorial do mundo
o amor a ser e a destruir tudo à passagem
imitando a força besta de um exército
e ainda assim salvar alguém
quaisquer restos de possibilidades que não queiram
ou sequer acreditem
mas que tenham duas ou mesmo uma só perna para andar
enviem-nos para cá
pois é com isso e só com isso que construo a minha vida
Olhando para os dois últimos livros de poemas de Paulo
José Miranda, Exercícios de Humano (2014) e este Auto-Retratos (2016), parece
haver entre eles uma sequência lógica. Se no primeiro observávamos o confronto violento
entre as ideias de Deus e da Natureza, neste aprofunda-se a ideia de Natureza
no contexto da existência humana. O ponto de partida poderia ser, a título de exemplo,
uma pergunta: o que há ainda de natural no ser humano? Tal indagação não se
processa sem mácula, aponta um percurso doloroso, “de deus a verme”, ou, por
outras palavras, da concepção à morte, entrevendo no caminho sobressaltos e
exaltações, lutas das quais se colherão pequenas conquistas, inevitáveis
derrotas. Uma indagação sem preocupações moralizantes, antes fiel à verdade que emerge da observação.
E essa verdade, por mais que procuremos disfarçá-la, é sempre cruel, é a verdade de um rosto olhando para si
próprio e penetrando-se para lá da superfície, o rosto a rasgar-se enquanto no
espelho ou nas águas vê reflectida a matéria última que o compõe. Ainda que não
se ensaiem conclusões, outra jamais poderíamos aceitar senão esta: «e onde se
lê paraíso / deverá ler-se em perífrase / aquele bem estar de onde somos
expulsos todos e a cada dia».
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