terça-feira, 20 de setembro de 2016

DO SUICÍDIO

Jacques Peuchet (n. 1758 – m. 1830) seria hoje, muito provavelmente, um ilustre desconhecido, não fora ter atraído a atenção de Karl Marx (n. 1818 – m. 1883) por causa de um capítulo nas suas Mémoires tirés des archives de la police de Paris: pour servir à l’histoire de la Morale et de la Police, Depuis Louis XIV Jusqu’a Nos Jours (1838). Concebidas quando era arquivista da Polícia, as memórias continham um capítulo intitulado Du suicide et de ses causes. Foi precisamente esse texto que Marx se encarregou de traduzir, de truncar e de comentar no final do ano de 1845, quando vivia na Bélgica após ter sido expulso de França, publicando-o no ano seguinte no mensário Gesellschaftsspiegel, concebido por Engels e Moses Heß para «retratar a miséria social e o regime burguês». Peuchet havia sido economista (atribui-se-lhe a cunhagem do termo “burocracia”), assumindo ao longo da vida cargos administrativos que o levariam aos arquivos da polícia de Paris. As memórias póstumas são de rigor duvidoso, ainda que para o tema aqui em causa pouco importe o rigor face ao naturalismo das descrições. Peuchet: Do Suicídio (Antígona, Junho de 2016, tradução de José Miranda Justo) consiste no artigo de Karl Marx publicado em 1846, acompanhado de três prefácios, um para a edição alemã, os outros para a primeira e segunda edições americanas, assinados, respectivamente, por Michael Löwy, Kevin Anderson e Eric A. Plaut. Antes de mais, convém sublinhar que estamos perante uma obra deveras incomum. Não tendo sido escrito pelo próprio Marx, o texto não revela sequer um cunho político, filosófico ou económico. No entanto, como aponta Löwy, «Marx, por diversas vias, impõe o seu selo sobre o texto: por intermédio da sua introdução, pelos seus comentários, (…) pela sua escolha dos excertos e por meio das modificações levadas a cabo na tradução» (pp- 10-11). Podemos em suma concluir que o que no texto de Peuchet cativou Marx foram os exemplos empíricos de uma sociedade enferma, composta por indivíduos humilhados, isolados, desprotegidos, agredidos por convenções castradoras da pessoa humana. Os casos de suicídio relatados, mormente de mulheres, assinalam com axiomática vivacidade o carácter desumano da sociedade capitalista e das suas clássicas instituições, nomeadamente a tirânica família burguesa, realçando o servilismo a que estão sujeitos indivíduos de todas as classes. O problema é transversal, não é de classe, já que a raiz do mesmo está numa ética fundada na hipocrisia e numa moral reaccionária que não atende à emancipação dos indivíduos. Ao assinar Peuchet: Do Suicídio, Marx não estava interessado em discutir ou sequer promover uma investigação acerca das causas e motivações do indivíduo que resolve matar-se. O seu interesse era mostrar o suicídio enquanto sintoma de uma estrutura social deficiente, sendo só por isso relevantes as razões sociais que levam à “morte de si”: a miséria, a opressão, a família como microcosmo de uma sociedade hipócrita que transforma em propriedade, à luz de um código civil indiferente à singularidade humana, cada um dos seus cidadãos. É este o contexto a partir do qual Marx desenvolve uma tese especialmente focada na defesa dos direitos da mulher e na sua libertação do jugo social, essencial e fundamentalmente determinado pela vontade masculina. Como bem recorda Kevin Anderson, Marx «recusava-se a separar a emancipação do trabalho da emancipação da mulher, defendendo que “o homem mais oprimido pode oprimir alguém, a sua mulher; a mulher é a proletária do próprio proletário”» (pp. 30-31). Apesar de saber que a maior taxa de suicídios compreendia (como ainda hoje compreende) pessoas do género masculino, Marx aproveita os exemplos oferecidos pelas memórias de Peuchet para acusar o “autoritarismo da família burguesa”, a “tirania parental” e a “violência matrimonial” exercidos sobre a mulher, como exemplos de alienação do indivíduo não só aceites, como também promovidos, por uma opinião pública reprodutora deste mal social: «Cora-se perante a opinião pública quando se a vê de perto, com a sua cobarde animosidade e as suas sujas suposições. A opinião é demasiado fraccionada pelo isolamento dos homens, demasiado ignorante, demasiado corrompida, porque todos são estranhos face a si mesmos e face aos outros» (p. 139). Do Suicídio não é, pois, um estudo sociológico como o levado a cabo por Émile Durkheim (n. 1858 – m. 1917), não é um ensaio moral acerca da culpabilidade como o desenvolvido por David Hume (n. 1711 – m. 1776), não é sequer uma especulação filosófica, de tipo existencialista, como a inigualavelmente explanada por Albert Camus (n. 1913 – m. 1960). É um texto de denúncia dos «males da vida privada». 

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