quarta-feira, 28 de setembro de 2016

FONTE LUMINOSA


A rotunda da fonte luminosa foi ocupada por um bando de gaivotas descontraídas. À hora de maior calor, refrescavam-se como crianças em gestos de folguedo. Contornando a rotunda, as viaturas obedeciam aos nervos dos condutores. Alguém buzinava por ter sido ultrapassado na fila, uma mãe batia no filho porque este havia batido no irmão sem que alguém o autorizasse, a autoridade multava um transportador desprevenido, três raparigas eram perseguidas pelo olhar depravado de um velho, na paragem do autocarro protestava-se o atraso crónico dos transportes públicos, duas mulheres confessavam-se uma à outra, maridos cada vez mais indiferentes, o trabalho, o cansaço, a idade, um homem sentou-se na esplanada a beber cervejas uma atrás da outra, o desempregado entregou um currículo, a mercearia abria pela última vez ao público, liquidação total, no céu os aviões traçavam planos de voo e um terrorista fazia o reconhecimento do ambiente para um próximo atentado, uma nuvem desaparecia sem deixar rasto, um homem matava-se sem que alguém desse por isso, a ambulância do INEM chegou tarde ao chamamento, a mulher morreu vítima de ataque cardíaco fulminante, um condutor não parou na passadeira, outro deu passagem à idosa com uma criança pela mão, o ciclista hesitou entre o passeio e a estrada, o homem de cadeira de rodas não teve por que hesitar, o passeio estava impedido com várias viaturas estacionadas ao longo da rua… Enquanto tal, um bando de gaivotas refrescando-se descontraidamente na rotunda da fonte luminosa levantou voo e foi ver o mar. 

4 comentários:

Anónimo disse...

Fantástico...Um texto que rouba o pé. E a respiração.

hmbf disse...

Obrigado.

Susana Rodrigues disse...

Gostei à brava de ler isto.

hmbf disse...

Grato.