quinta-feira, 27 de outubro de 2016

DIÁRIOS

Assim como me repugna a ideia da confissão, julgo pueril a convicção de que o ser se revele pela escrita. O ser é sempre um mistério em construção, escapa-nos como areia entre os dedos. Quando muito, os diários serão apenas exercícios de autoconhecimento. Jamais de revelação, até porque nada há a revelar. Mistério revelado deixa de ser mistério. Há uma parte de nós que é inalcançável como o horizonte. O exercício mais exigente da vida é tentar alcançar essa parte, conhecê-la, percebê-la, mas jamais nos será possível revelá-la ou confessá-la senão aceitando perante nós e todos o que à partida já temos de evidente: somos nada. Pode a filosofia tentar encontrar nomes para isto, podem cientistas da alma humana apregoar as mais disparatadas teses sobre um inconsciente e uma essência que no final redundarão sempre em morte. Ora, julgo muito mais valiosa esta perspectiva do que outra qualquer. Obriga-nos a estar atentos à vida e a aprender a retirar proveito dela. Miguel Torga arrisca traçar nos seus diários traços do perfil de uma existência, mas adverte-nos desde o início para a noção de que um perfil não encerra um rosto. Ainda assim, há entradas que lemos com a sensação de que estamos a tocar a esfera mais íntima de uma vida humana:

De Diário I:
Coimbra, 14 de Janeiro de 1937 — A maior desgraça da vida, vistas bem as coisas, acaba por não ser a morte. Salvo aqueles casos catastróficos, que sob o ponto de vista do aniquilamento são uma perfeita maravilha, morre-se quando esta coisa que se chama corpo, por uma razão ou por outra, está podre. Quando, afinal, a ele próprio já não lhe apetece viver. A desgraça verdadeira é esta de nós andarmos aqui a namorar o céu, a pisar a terra, a investir contra o mar — e nem o céu, nem a terra, nem o mar saberem sequer que a gente existe.

De Diário II:
Açor, serra da Lousã, 26 de Outubro de 1942 — Aqui estou, no alto desta serra ondulada, sentado, a contemplar um largo horizonte, enquanto o cão abana o rabo, um tanto ou quanto perplexo dum descanso com perdizes à vista. Paciência, camarada, que são apenas dois minutos. O coração ainda puxa, mas já pede de vez em quando, pelo amor de Deus, um pouco de caridade cristã. De maneira que não há remédio. De resto, faz parte do meu ritual subir aos altos, sentir a voluptuosidade da fadiga, como diz Unamuno e depois olhar. Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo. Os homens só me deram tristezas. Ou eu nunca os entendi, ou eles nunca me entenderam. Até os mais próximos, os mais amigos, me cravaram na hora própria um espinho envenenado no coração. A terra, com os seus vestidos e as suas pregas, essa foi sempre generosa. É claro que nunca um panorama me interessou como gargarejo. É mesmo um favor que peço ao destino: que me poupe à degradação das habituais paneladas de prosa, a descrever de cor caminhos e florestas. As dobras e as cores do chão onde firmo os pés foram sempre no meu espírito coisas sagradas e íntimas como o amor. Falar de uma encosta coberta de neve sem ter a alma branca também, retratar uma folha sem tremer como ela, olhar um abismo sem fundura nos olhos, é para mim o mesmo que gostar sem língua, ou cantar sem voz. Vivo a natureza integrado nela. De tal modo, que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espectáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno. Bem sei que há gente que encontra o mesmo universo no jogo dum músculo ou na linha dum perfil. Lá está o exemplo de Miguel Ângelo a demonstrá-lo. Mas eu, não. Eu declaro aqui a estas fundas e agrestes rugas de Portugal que nunca vi nada mais puro, mais gracioso, mais belo, do que um tufo de relva que fui encontrar um dia no alto das penedias da Calcedónia, no Gerês. Roma, Paris, Florença, Beethoven, Cervantes, Shakespeare… Palavra, que não troco por tudo isso o rasgão mais humilde da tua estamenha, Mãe!

De Diário III:
Gerês, 6 de Agosto de 1944 — Disse hoje isto a uma destas senhoras que vem aqui tratar da icterícia:
   — Olhe, eu tenho mais respeito por um animal do que por vocês. Ao menos uma cadela pare, amamenta os filhos, não tem vícios e é natural. Vocês passam a vida a levantar ou a abaixar a saia conforme as ordens de Paris, a pôr na cabeça quantas parvoíces vos lembram, e, sobretudo, a exibir um sexo imundo que, para limpeza da humanidade, devia ser cosido com uma agulha de albarda.

De Diário IV:
Lisboa, 26 de Março de 1949 — Depois da manta de farrapos do caminho — tiras de verdura sobre o vermelho das terras —, o Chiado, esta vitrina única do mundo, onde se pode ver a arte e a inteligência em compota, dentro de frascos transparentes. Que náusea e que lição! Aqui o poeta Inácio, em ponto de lágrima; ali o romancista Teodoro, em molho leve; acolá o ensaísta Fagundes, em geleia carregada. Todos na bem-aventurança da glória! Nenhum se lembrou nunca de que está morto dentro da sua calda. Cuidam que vêem a vida verdadeira através da redoma que os limita, e que a vivem, mesmo afogados em melaço. Esqueceram não só as leis da óptica, como os efeitos da esterilização. E toda a gente sabe que a luz sofre um desvio quando passa pelo vidro e que tudo sucumbe dentro de uma autoclave.
   Não. Portugal não tem, nem terá nunca uma literatura digna e viva enquanto não vier outro terramoto de 1755. Só quando cair e arder esta viela da embófia, e o Tejo varrer de uma vez para sempre o cadáver destes frutos humanos mirrados e embalsamados, poderá surgir uma arte que tenha as raízes na sua pátria e dê flores capazes de serem admiradas em qualquer parte do mundo.



Miguel Torga, in Diário – Vols I-IV (1941-1949), Círculo de Leitores, Março de 2001.

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