quinta-feira, 13 de outubro de 2016

O MEU PRIMEIRO BOB DYLAN


Não me recordo de viver sem música por perto. A hipótese disso vir a acontecer é-me mais insuportável do que a ideia da morte. Se há agradecimento que devo à família, foi desde muito cedo ter-me rodeado de música. Nem sempre boa, quase sempre razoável para cima. Mas música. Lá por casa havia, por exemplo, umas caixas com sucessos compilados que as Selecções do Reader’s Digest se encarregavam de fazer chegar à província. Eu tinha menos de 10 anos e passava muitas horas a ouvir rádio ou à volta desses discos, que fazia rodar na primeira aparelhagem que houve em casa: um prato isolado directamente ligado a duas colunas. Numa dessas colectâneas da década de 60 ouvi, pela primeira vez, House of  the Rising Sun, na versão dos The Animals, Mr. Tambourine Man, na versão dos The Byrds, e All Along The Watchtower, na versão da The Jimi Hendrix Experience, todas atribuídas a Bob Dylan. Na realidade, a primeira é um tradicional de New Orleans, lamento pelo percurso da pobreza à prostituição que Dylan incluiu no álbum de estreia. Além dessas versões, havia uma canção do próprio: Lay Lady Lay. O nome daquele escritor de canções repetia-se várias vezes, era impossível não atrair atenções. Acresce que os temas se distinguiam dos demais por razões que só a intuição infantil consegue compreender. Não tinham a ligeireza melódica dos The Beatles nem o imediatismo rockeiro dos The Rolling Stones (magnífica, a versão que anos mais tarde a banda de Mick Jagger e Keith Richards ofereceu a Like a Rolling Stone). A voz de Dylan era diferente, os arranjos eram diferentes, havia em seu redor a estranheza provocada pelo génio. Não posso garantir a data exacta em que aportou na Rua de Santa Bárbara a dose dupla de More Bob Dylan Greatest Hits, mas sei que por essa altura (14, 15 anos) era rapaz que ouvia The Doors, Neil Young, Dire Straits, Simon & Garfunkel… 



Bob Dylan reunia dois universos que sempre me agradaram, o das canções folk acompanhadas por guitarra acústica e harmónica, o dos blues inclinados, aqui e acolá, para o rock and roll da velha escola. Watching The River Flow, porta de abertura para More Bob Dylan Greatest Hits, é na sua essência uma vulgar canção rock and roll. Mas se lhe pegarmos pela letra, então a vulgaridade esvai-se para dar lugar a uma extraordinária crónica social sobre o passar do tempo e a inutilidade de esforços absurdos, testemunho existencial sobre inevitabilidades que denunciam a fragilidade do humano sem dissiparem por completo a utopia: «If I had wings and I could fly / I know where I would go / But right now I'll just sit here so contentedly / And watch the river flow». De facto, Dylan começa a parecer invulgar quando paramos para o ler, quando lhe prestamos atenção às letras e nele descobrimos um poeta extraordinário que, não por acaso, foi produzindo ao longo de décadas inúmeras canções emblemáticas. Independentemente das polémicas em que se envolveu, algumas delas contribuindo para uma deterioração da imagem de singer/songwriter socialmente empenhado, vislumbramos na sua obra um compromisso de raiz humanista, desinteressado dos radicalismos que à esquerda e à direita marcaram a sua geração. 
A páginas tantas do primeiro volume de Crónicas, afirma: «A par dos comboios e dos sinos, a rádio fazia parte da banda sonora da minha vida». A alusão aos comboios e aos sinos não é acidental neste maná sonoro. Os comboios são um dos símbolos maiores da unidade americana, estão associados à transformação de uma paisagem que foi dobrada à custa de muita exploração humana e lançou para a miséria e para o desamparo inúmeros cidadãos. Mas os comboios estão igualmente associados à facilidade de deslocação, a um certo nomadismo em que as metamorfoses líricas de Bob Dylan embarcaram desde muito cedo. Essa ideia de deslocamento e de mudança, que arrasta consigo dor e sofrimento, mas ao mesmo tempo gera expectativas e alimenta a esperança dos homens, é um dado concreto da canção dylaniana que não podemos negligenciar. Daí também os sinos, elemento que aponta para uma das fases mais mal-amadas e incompreendidas de uma longa carreira. Ocorre-me um álbum como Saved (1980), polémico registo a abrir a década de 1980, com aproximações ao universo religioso através de uma apropriação particular da música gospel e dos espirituais negros. A verdade é que nesse álbum elabora-se uma outra aproximação, a qual seria deveras pertinente à luz dos acontecimentos actuais como o foi à época. Trata-se de uma aproximação entre raízes étnicas que vem ferindo de morte a tal unidade da América enquanto nação, segregando estirpes em função da cor da pele ou das crenças religiosas. 
Eis-nos perante uma obra que congrega, cuja característica mais evidente e porventura mais vertebral é precisamente a de reclamar a humanidade como um todo. Ultrapassada a fase do vinil, recordo-me que o primeiro CD de originais de Dylan que adquiri foi Oh Mercy (1989). Em retrospectiva, é o ano da retirada da União Soviética do Afeganistão, ano de manifestações em Pequim, ano da queda do Muro de Berlim… Apesar dos temas algo melancólicos superiormente produzidos por Daniel Lanois, dos mais bonitos, por assim dizer, que conhecemos na longa carreira de Dylan, o álbum abre com um perturbador testemunho dos tempos. A canção Political World foi a banda sonora ideal para o que estava a acontecer e se adivinhava enquanto efeito dos acontecimentos de então. Volto a escutá-la hoje, em época de Trump, de Erdoğan, de Daesh e afins. Infelizmente, uma canção destas não morre:


Sem comentários: