sábado, 1 de outubro de 2016

VACA*


Como despedir-me da terra que não senti? Em nenhum lugar foi a alegria quem reinou. Talvez um certo bem-estar favorável aos nervos e às palpitações, a ilusão de uma liberdade reduzida a ínfimas ausências: nada de relógios, nada de horários, nada de livros de ponto, nada de calendários. Apenas um diário onde anotamos a passagem dos dias, oferecendo a cada página meia dúzia de linhas espontâneas, improvisadas, um desenho mal-amanhado, versos toscos. Coisas de que nos envergonhamos sempre que as revemos. Lixo. Como despedir-me de terra alheia? Jamais serei deste lugar, nem sei de onde sou, nem sei se posso afirmar que sou. Nasci em pântanos de ódio, recordações péssimas de vidas curtas, amesquinhadas pelo mexerico e pela intromissão, ruas curtas, tão curtas e tão estreitas que parecem cordões umbilicais. Soube da casa os cantos. Mas não fui dali, nunca. Emigrei para avenidas largas onde me perdi de mim próprio e nunca mais me encontrei. Talvez tenha sido alegre numa madrugada de Outono junto ao Teatro Nacional, a ler Rilke, não por estar a ler Rilke junto ao Teatro Nacional mas por ter largado numa poça nojenta os versos fastidiosos do checo. Junto ao mar sou sempre feliz, no meio do deserto sou sempre feliz, perdido na floresta sou sempre feliz, a subir a montanha sou feliz. Onde homens cabisbaixos passeiam dossiers de dívidas e mulheres dúbias camuflam dores com artifícios estéticos, colocando saltos, passando lápis pelos olhos, inventando texturas onde o tempo permite apenas decomposição celular, eu não vislumbro qualquer resquício de alegria. Apenas ilusão. Poeta amigo escreve-me sobre um dos meus suicidas, assegura que tivesse o finado reparado na montra de pastéis, nas universitárias joviais, no pregão da vendedora de castanhas, jamais teria, sem que ninguém saiba porquê, mandado a vida bugiar. Eu divirto-me a contemplar vacas e bois, sarracenos, mas é de tédio e de saturação o meu repasto. Sabemos a cura. Adiamos a cura. E como o povo asseguramos que boi em terra alheia é vaca.


* Em sentido figurado e informal, vaca é sinónimo de sorte.

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