sexta-feira, 30 de setembro de 2016

NÚMEROS


Os números são aquilo que quisermos fazer deles. Tenho ouvido tantas vezes isto que chego a pensar ser um chavão facilmente desmontável. Mas não. Os mesmos números podem ser apresentados de formas diversas, gerando assim interpretações contraditórias. Por exemplo, é possível  dizer-se na sequência de um estudo que «No espaço televisivo português há atualmente 14 espaços de comentário de militantes de partidos de direita (PSD e CDS-PP) e 13 espaços de militantes de partidos de esquerda (PS, Bloco de Esquerda, PCP e Livre/Tempo de Avançar).» Parece haver um equilíbrio, ainda que a esquerda esteja maioritariamente representada no parlamento. A distribuição do espaço televisivo não tem que ter isso em conta, mas seria mais equilibrado se tivesse. Prefere dar mais voz à oposição, aceita-se. Presumamos, no entanto, que alterada a correlação de forças opte o espaço televisivo pelo mesmo critério: dar mais tempo de antena à oposição. Seria o ideal, ainda que pouco avisado seja crer em tais cuidados. 
No entanto, aquela mesma afirmação, acerca de uma análise efectuada pelo Laboratório de Ciências da Comunicação do ISCTE-IUL aos comentadores «residentes» nas televisões em Portugal, toma outro sentido quando acrescentamos outros dados revelados pelo mesmo estudo. Senão vejamos: «O PSD tem 11 espaços de comentários fixos, o PS tem 7, o BE tem 4, o CDS-PP tem 3, o PCP e o L/TDA têm um cada». Ou seja, o PCP tem menos espaço de comentário fixo do que um partido (?) que nem sequer conseguiu representação parlamentar. O quadro ao alto é sintomático das paixões, dos amores, das inclinações, enfim de para onde pende o interesse das nossas televisões. Sabendo da relevância que este meio ainda tem junto da chamada opinião pública, como discordar daqueles para quem «a opinião é demasiado fraccionada pelo isolamento dos homens, demasiado ignorante, demasiado corrompida, porque todos são estranhos face a si mesmos e face aos outros» (Marx)? 
Se noutros tempos tivemos a censura a travar a mensagem, agora temos a manipulação. Faz-se acreditar que a mensagem passa, quando na realidade ela permanece isolada num canto recôndito, sufocada pelo ruído, subsumida na poeira dos dias. Por isto mesmo se revela cada vez mais importante apostar nas novas formas de comunicação para fazer passar uma mensagem, porque essas (plata)formas de comunicação estão livres dos constrangimentos que eufemisticamente reduzimos à ideia de paixões, amores, inclinações dos media tradicionais. O risco que se corre é o da morte de uma ilusão, ou seja, a da imparcialidade da comunicação. No fundo, o risco que se corre é o da morte do jornalismo enquanto transmissor isento, desinteressado, imparcial. Porque o não é, denunciemo-lo com a clareza que os números exigem. 

Nota: vale a pena ler na íntegra esta notícia de Maio passado sobre o estudo supracitado.

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