sexta-feira, 4 de novembro de 2016

ONDE TODOS OBSERVAM

Quando, em 1993, surgiu nas salas de cinema Short Cuts, sem dúvida um dos melhores filmes assinados por Robert Altman, houve quem tivesse comparado o filme a um edifício despido de paredes. O espectador assistia aos diferentes sketches como se estivesse a observar o que ao mesmo tempo se passava nos diversos andares de um mesmo prédio. Lembrei-me desta dimensão criativa da montagem ao ler Onde Todos Observam (Elsinore, Julho de 2016), que não por acaso começa com um texto onde o fotógrafo Robert Mapplethorpe é representado a fazer colagens com partes de corpos masculinos recortados de uma revista. A colagem é um exercício de montagem que oferece à realidade uma nova conjugação dos seus elementos, ao passo que a fotografia, exceptuando experiências muito específicas, representa a realidade a partir de uma perspectiva. Aprendemos a olhar a totalidade de um objecto decompondo-o e voltando a unificá-la sob múltiplos pontos de observação. É precisamente isso que Megan Bradbury se propõe fazer com Nova Iorque, num livro de estreia onde nem sempre a ambição formal resulta no prazer da leitura. 
Em capítulos breves, por vezes brevíssimos, e isolados como ilhas, aquela que é porventura a mais retratada das cidades do mundo surge em frases curtas e concretas, amiúde em espaços ecfrásicos, a partir de anotações biográficas acerca de alguns dos seus mais emblemáticos habitantes. Especializada em escrita criativa, Megan Bradbury sabe os riscos que corre quando se refere ao seu livro de estreia chamando-lhe romance. Num tempo em que um post pode ser confundido com crítica literária, a qualquer objecto literário minimamente ficcionado se pode dar o nome de romance. Mas só com muito boa vontade e bastante espírito criativo poderemos aceitar que Onde Todos Observam seja ficção, ainda que não nos custe arrumá-lo entre os clássicos do género. A discussão seria irrelevante não nos obrigasse a leitura a questionar a declaração da autora. Podemos partir do princípio que se a autora afirma que escreveu um romance, então nós lemos um mau romance. Mas não se tratando de um romance, teremos lido um livro agradável de não-ficção. 
É que de um romance espera-se algo mais do que uma colagem de fragmentos, mais ou menos interessantes e reveladores, acerca de um tema comum. Mesmo que não exijamos um nexo narrativo, esperamos um fio condutor. E ele não existe aqui. Se existe, é de modo tão ténue que não damos por ele. Mais parece estarmos perante uma manta de retalhos com o propósito final de nos oferecer, em relevo, o rosto de uma cidade. Os retalhos provêm de fontes diversas, mormente fotografias, documentários, filmes, livros, relacionadas com figuras relevantes e reveladoras do espírito nova-iorquino. O engenheiro Robert Moses (1888-1981), com o seu empreendedorismo inabalável, é uma das figuras em foco, ou não tivesse sido ele um dos principais responsáveis pelo planeamento urbanístico da mais influente cidade do mundo. Também no centro das atenções está o fotógrafo Robert Mapplethorpe (1946-1989) e quem com ele conviveu num meio artístico dado à estilização do corpo. Walt Whitman (1819-1892), invariavelmente acompanhado do seu biógrafo Richard Bucke (1837-1902), é outra das personalidades no centro das atenções. Mas aparecem ainda o escritor Edmund White (1940), a rocker Patti Smith (1946), ou a canadiana Jane Jacobs (1916-2006), autora do atinente The Death and Life of Great American Cities (1961). 
Toda esta gente surge sem outra ligação que não seja a de se movimentar num palco geográfico comum, embora seja precisamente a partir dessa ligação que podemos estabelecer entre os recortes que compõem o livro uma panorâmica com elementos paisagísticos não necessariamente acolhedores. Aqui e acolá, certo desencanto, que não afecta o tom geral de espanto e de admiração, emerge de uma brutal constatação de como o espaço não se transforma com e para as pessoas, parecendo instaurar-se entre a cidade e os seus habitantes um frio distanciamento.  «As ideias não são como ilhas, pois não podem ser fixadas num mapa», afirma Whitman. Mas as cidades podem. E, em certo sentido, Nova Iorque é uma ideia. Uma ideia que pode ser fixada num mapa. Ou pelo menos é com essa ideia que ficamos depois de a observarmos desse miradouro Onde Todos Observam.

1 comentário:

Claudia Sousa Dias disse...

Ha...!!!

Comprei há dias por uma libra em segunda mão!

iupi...!