sábado, 14 de janeiro de 2017

CAMPISMO SELVAGEM


   Em inédito publicado num opúsculo dividido com Inês Dias, Manuel de Freitas remata a prosa do poema constatando que a sua poesia «passou do campismo selvagem a um longo corredor vazio onde já não espero encontrar ninguém». Pergunto-me se não será sempre assim. 
   Por vezes, tendo a pensar que toda a poesia devia ser escrita num breve período de vida, exprimindo o fulgor de uma circunstância indomável. De preferência, toda a poesia devia ser da juventude, do rasgo sem freios que a língua aceita quando ainda não fomos condenados pelo peso dos deveres e das obrigações. Manter-se numa tenda no meio da floresta incógnita, sem refeitórios por perto nem paredes, muito menos aquecimento central. Atravessada pelos insectos inoportunos, exposta a intempéries e ao desconforto de climas adversos. Assim devia ser, mas não é. 
   Os poetas anseiam por obras completas, supondo porventura que no peso dos volumes reside a providencial justiça que o reconhecimento consagra. Depois arrastam-se por versos intermináveis condenados à partida por uma acomodação contrária à própria poesia. Rimbaud desmente-os, tal como Cesário ou Pessanha e tantos outros que, interrompidos por razões diversas, outorgaram versos cheios desse fulgor que o passar dos anos não apaga. Começaram e acabaram no campismo selvagem, mesmo cumprindo-se, como Cesário, na mais convencional das existências. 
   Em prosa, o poema completo:

SÍTIO DA NAZARÉ, 1979

Não tenho a certeza do nome da senhora (que talvez se chamasse Maria Augusta) a quem os meus avós alugavam casa no Sítio, mas sei que era inequivocamente cigana e que a casa ficava mesmo ao lado da praça de touros. Eu dormia no corredor, numa cama minúscula escondida por reposteiros. Os avós entretanto morreram, e a minha mãe optou pelo campismo selvagem nos pinhais em volta, antes de se render ao fascínio terapêutico da praia da Consolação.
   Desconheço se devo a estas remotas experiências a tristeza que ainda hoje associo ao Sítio. Mas parece-me evidente que a minha poesia evoluiu (se é que evoluiu) num sentido exactamente contrário: passou do campismo selvagem a um longo corredor vazio onde já não espero encontrar ninguém.



Manuel de Freitas, Inês Dias, in Sítio, Volta D’Mar, Maio de 2016, p. 14. Fotografia respigada aqui.

2 comentários:

Marina Tadeu disse...

Belíssimo. De momento partilho com Nassar o lamento de já não haver ingenuidade na poesia.

margarete disse...

lindo