Em inédito publicado num opúsculo dividido com Inês Dias,
Manuel de Freitas remata a prosa do poema constatando que a sua poesia «passou
do campismo selvagem a um longo corredor vazio onde já não espero encontrar
ninguém». Pergunto-me se não será sempre assim.
Por vezes, tendo a pensar que
toda a poesia devia ser escrita num breve período de vida, exprimindo o fulgor
de uma circunstância indomável. De preferência, toda a poesia devia ser da
juventude, do rasgo sem freios que a língua aceita quando ainda não fomos
condenados pelo peso dos deveres e das obrigações. Manter-se numa tenda no meio
da floresta incógnita, sem refeitórios por perto nem paredes, muito menos
aquecimento central. Atravessada pelos insectos inoportunos, exposta a
intempéries e ao desconforto de climas adversos. Assim devia ser, mas não é.
Os
poetas anseiam por obras completas, supondo porventura que no peso dos volumes reside
a providencial justiça que o reconhecimento consagra. Depois arrastam-se por versos intermináveis condenados à partida por uma acomodação contrária à própria poesia. Rimbaud desmente-os,
tal como Cesário ou Pessanha e tantos outros que, interrompidos por razões
diversas, outorgaram versos cheios desse fulgor que o passar dos anos não
apaga. Começaram e acabaram no campismo selvagem, mesmo cumprindo-se, como Cesário, na mais convencional das existências.
Em prosa, o poema completo:
SÍTIO DA NAZARÉ, 1979
Não tenho a certeza do nome da senhora (que talvez se
chamasse Maria Augusta) a quem os meus avós alugavam casa no Sítio, mas sei que
era inequivocamente cigana e que a casa ficava mesmo ao lado da praça de
touros. Eu dormia no corredor, numa cama minúscula escondida por reposteiros.
Os avós entretanto morreram, e a minha mãe optou pelo campismo selvagem nos
pinhais em volta, antes de se render ao fascínio terapêutico da praia da
Consolação.
Desconheço se devo a estas remotas experiências a
tristeza que ainda hoje associo ao Sítio. Mas parece-me evidente que a minha
poesia evoluiu (se é que evoluiu) num sentido exactamente contrário: passou do
campismo selvagem a um longo corredor vazio onde já não espero encontrar
ninguém.
Manuel de Freitas, Inês Dias, in Sítio, Volta D’Mar, Maio
de 2016, p. 14. Fotografia respigada aqui.
2 comentários:
Belíssimo. De momento partilho com Nassar o lamento de já não haver ingenuidade na poesia.
lindo
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