sábado, 14 de janeiro de 2017

CARTAS CONTRA O FIRMAMENTO

Confiando em informações disponíveis na Wikipédia, o inglês Sean Bonney (n. 1969) começou a publicar em 2002. Letters Against the Firmament surgiu em 2015, com edição da Enitharmon Press, depois de vários “panfletos, plaquetes e ensaios”, onde se incluem abordagens às obras de Baudelaire e de Rimbaud. Com tradução de Miguel Cardoso, a Douda Correria publicou entre nós Cartas Contra o Firmamento (Junho de 2016), reunião heteróclita de textos em prosa, com alguns versos pelo meio, ilustrados com indiscutível pertinência por Pedro Pousada.
De carácter abertamente contestatário, estas epístolas enviam-nos tanto para o tom de inúmeros manifestos vindos a lume ao longo do séc. XX como para a poesia beat que mais se focou na intervenção cívica. Não percamos de vista, no entanto, o rasto deixado pelo próprio autor no decorrer de textos onde se incluem referências ao “surrealista da negritude” Aimé Césaire, ao Beatnik Amiri Baraka, ao comunista heterodoxo Pier Paolo Pasolini, a músicos de free jazz ou aos grandes cultores da canção de protesto. Reflectindo sobre o seu tempo, Sean Bonney propõe uma poética conflituosa, beligerante, que não enjeite a realidade, mas que a ela se aponha como um acto terrorista à maneira de Hakim Bey. Numa anárquica dispersão de conjecturas, o eu lírico mistura-se na confusão de motins e de tumultos para sabotar uma ideia de poético que resiste à violência como quem volta o rosto à realidade. Reaproximando a poesia da intervenção cívica musculada, estes textos denotam uma vontade obsidiada pela raiva e pela fúria do discurso. «Proibido afixar milagres» — diz-se a determinada altura, com ironia, como quem pressente no romantismo dos ideais a falência das utopias, do discurso político consagrado pela história, da poesia obediente à retórica desse mesmo discurso.
Há porém uma fragilidade nesta postura que não deve iludir-nos. A linguagem é ainda a que conhecemos das mais variadas formas de intervenção cívica, com os seus clichés consolidados por uma total incapacidade de fazer implodir a lógica das convenções. O tom libertário não chega a ser libertador, ainda que inquiete o pensamento e agite as águas da sensibilidade. De resto, o próprio autor parece estar ciente das suas limitações quando, a páginas tantas, reconhece: «Às vezes o meu próprio vocabulário faz-me contorcer de embaraço». Esse embaraço surge do reconhecimento de uma impotência face ao discurso oficial e oficioso. Fazendo uso das mesmas palavras, a poesia facilmente fica refém de um código que determina e possibilita a comunicação. O facto de estarmos perante uma forma de expressão, a carta, onde a comunicabilidade é central, e aceitando que, para todos os efeitos, o emissor das missivas é um sujeito indefinido, não liberta estes poemas em prosa dos constrangimentos instaurados pelo uso comum de uma língua que permita fazer circular uma mensagem. E a mensagem volta a estar aqui no núcleo mais central do poema.

Cartas Contra o Firmamento é, apesar das suas naturais limitações, um livro inquietante, com uma extraordinária capacidade de reintegrar o político na poesia, assumindo como poéticos temas eminentemente sociológicos como sejam os da gentrificação, do desemprego, ou das formas de luta e de protesto cívicos. Assumindo em si mesmos uma poética da violência — «em vez de ‘amo-te’ diz que se foda a polícia» —, estes textos são eles próprios uma insurreição no interior do lirismo. Não fazem o elogio do ódio nem cantam a crueldade, invadem  os territórios onde o ódio e a crueldade medram para deles retirarem coléricas manifestações de consciência: «A poesia é estúpida, mas, por outro lado, a estupidez não é a ausência de capacidade intelectual, é antes a cicatriz da sua mutilação». Portanto, é como uma espécie de cicatriz da poesia mutilada que as Cartas chegam ao seu natural receptor, o leitor para quem a realidade ainda não se reduziu definitiva e estupidamente ao mundo lá fora. Porque afinal, é bem dentro dele que tudo opera. 

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