Confiando em informações disponíveis na Wikipédia, o
inglês Sean Bonney (n. 1969) começou a publicar em 2002. Letters Against the
Firmament surgiu em 2015, com edição da Enitharmon Press, depois de vários “panfletos,
plaquetes e ensaios”, onde se incluem abordagens às obras de Baudelaire e de
Rimbaud. Com tradução de Miguel Cardoso, a Douda Correria publicou entre nós
Cartas Contra o Firmamento (Junho de 2016), reunião heteróclita de textos em
prosa, com alguns versos pelo meio, ilustrados com indiscutível pertinência por
Pedro Pousada.
De carácter abertamente contestatário, estas epístolas
enviam-nos tanto para o tom de inúmeros manifestos vindos a lume ao longo do
séc. XX como para a poesia beat que mais se focou na intervenção cívica. Não
percamos de vista, no entanto, o rasto deixado pelo próprio autor no decorrer
de textos onde se incluem referências ao “surrealista da negritude” Aimé
Césaire, ao Beatnik Amiri Baraka, ao comunista heterodoxo Pier Paolo Pasolini,
a músicos de free jazz ou aos grandes cultores da canção de protesto.
Reflectindo sobre o seu tempo, Sean Bonney propõe uma poética conflituosa, beligerante,
que não enjeite a realidade, mas que a ela se aponha como um acto terrorista à
maneira de Hakim Bey. Numa anárquica dispersão de conjecturas, o eu lírico mistura-se
na confusão de motins e de tumultos para sabotar uma ideia de poético que
resiste à violência como quem volta o rosto à realidade. Reaproximando a poesia
da intervenção cívica musculada, estes textos denotam uma vontade obsidiada
pela raiva e pela fúria do discurso. «Proibido afixar milagres» —
diz-se a determinada altura, com ironia, como quem pressente no romantismo dos
ideais a falência das utopias, do discurso político consagrado pela história,
da poesia obediente à retórica desse mesmo discurso.
Há porém uma fragilidade nesta postura que não deve
iludir-nos. A linguagem é ainda a que conhecemos das mais variadas formas de
intervenção cívica, com os seus clichés consolidados por uma total incapacidade
de fazer implodir a lógica das convenções. O tom libertário não chega a ser
libertador, ainda que inquiete o pensamento e agite as águas da sensibilidade.
De resto, o próprio autor parece estar ciente das suas limitações quando, a
páginas tantas, reconhece: «Às vezes o meu próprio vocabulário faz-me contorcer
de embaraço». Esse embaraço surge do reconhecimento de uma impotência face ao
discurso oficial e oficioso. Fazendo uso das mesmas palavras, a poesia
facilmente fica refém de um código que determina e possibilita a comunicação. O
facto de estarmos perante uma forma de expressão, a carta, onde a comunicabilidade
é central, e aceitando que, para todos os efeitos, o emissor das missivas é um
sujeito indefinido, não liberta estes poemas em prosa dos constrangimentos instaurados
pelo uso comum de uma língua que permita fazer circular uma mensagem. E a
mensagem volta a estar aqui no núcleo mais central do poema.
Cartas Contra o Firmamento é, apesar das suas naturais
limitações, um livro inquietante, com uma extraordinária capacidade de reintegrar
o político na poesia, assumindo como poéticos temas eminentemente sociológicos
como sejam os da gentrificação, do desemprego, ou das formas de luta e de
protesto cívicos. Assumindo em si mesmos uma poética da violência —
«em vez de ‘amo-te’ diz que se foda a polícia» —, estes textos são eles
próprios uma insurreição no interior do lirismo. Não fazem o elogio do ódio nem
cantam a crueldade, invadem os territórios onde o ódio e a crueldade
medram para deles retirarem coléricas manifestações de consciência: «A poesia é
estúpida, mas, por outro lado, a estupidez não é a ausência de capacidade
intelectual, é antes a cicatriz da sua mutilação». Portanto, é como uma espécie
de cicatriz da poesia mutilada que as Cartas chegam ao seu
natural receptor, o leitor para quem a realidade ainda não se reduziu definitiva
e estupidamente ao mundo lá fora. Porque afinal, é bem dentro dele que tudo opera.
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