terça-feira, 31 de janeiro de 2017

ESTÓRIAS AÇORIANAS


É na insularidade que melhor observamos como à beleza da paisagem serve de contraponto uma fauna humana demarcada pela exiguidade do espaço físico, o qual apela a uma conservação de tradições que oferece ao meio características algo picarescas. Nas Novas Estórias Açorianas (Companhia das Ilhas, Novembro de 2016), Carlos Alberto Machado (n. 1954) dá continuidade a uma recolha iniciada com as Estórias Açorianas (idem, Maio de 2012, 7 edições). 
O arquipélago serve de laboratório observacional, surgindo a tal fauna humana enquanto objecto de observação. Intervindo o menos possível, o narrador chega-se à janela para perscrutar a vizinhança, reproduzindo-lhes boatos e memórias, captando-lhes tiques, fintando os ditames da literatura para que o texto resulte o mais humano possível. Todo o método parte do olhar para se concentrar na pessoa humana, quase sempre no contexto da interacção comunitária, mais raramente singularizada.
Emigrantes regressados à terra natal, o grupo da sueca, o típico sábio do Café Central, veteranos reformados da Capitania, mulheres de má fama, gente honrada e outra caída em desonra, o velho e o novo misturando-se para resultarem em algo ainda incerto, anciãos que são projecções humanas de vilas, de freguesias, cuja história é sobretudo a de quem as habita, o professor forasteiro, o Director da Biblioteca, mestres de artes perdidas, abandonadas, gente mexeriqueira, padres, autarcas, jovens arquitectos, sôtôres e respectivos acólitos, «moças que atravessaram o Atlântico em busca de cama, mesa e roupa lavada», proporcionam e motivam relatos que são fruto de um olhar intencionalmente situado à margem dos acontecimentos. 
Mas o que importa a estas “estórias” é precisamente o acontecimento, não é o modelo. O que interessa ao narrador, mais do que julgar o lugar social das suas personagens, é oferecer-lhes um nome próprio. Mesmo quando parecem descambar para uma dimensão onírica, as situações narradas caem à terra através de um nome humano, uma figura tipo facilmente reconhecível e porventura identificável num território que, afinal, extravasa as fronteiras do arquipélago, aplicando-se com justeza a todos os lugares onde aquilo a que chamamos modernidade ainda não aniquilou por completo velhos vícios e vetustas virtudes da vida em comunidade:

OLHOS DE FAZER MUNDOS

   É com os olhos que primeiro cultiva a terra. Não é coisa de agora, era ele pequeno e já a mãe o adivinhava, dizia ela para o seu homem: «o nosso filhinho sonha com os olhos abertos». Neles, sem mãe nem pai saberem, desenhava o menino as suas primeiras brincadeiras, os seus primeiros sonhos. Mas António não sabia, nunca soube que era isto que a mãe via nos seus olhos. Talvez ela lho quisesse dizer um dia, mas partiu antes de chegar a decidir-se. Talvez tenha sido melhor assim.
   Olhamos os olhos de António e vemos regos de água, árvores e animais, uma casa a abraçar uma árvore forte e frondosa, um cão atento. Cores quentes e um homem de olhos verdes que é ele a caminhar a passos largos sobre a terra. O homem que é ele e que se sonha, trabalha a terra com as suas próprias mãos. Mas o que suja, alarga e fortalece as suas mãos é mais que coisa orgânica, é o próprio mundo que ele faz nascer.
   António e os seus olhos de fazer-mundos já desenharam mundos de outras maneiras. Em pedaços de papel sensível, entre claros e escuros, linhas e ângulos e coisas por desvelar, descobriu ele outro modo de ser e de se ir fazendo homem – cada vez mais longe da mãe. Ou talvez não.
   No tempo em que o ódio ainda lhe aflorou os olhos e as mãos, como a qualquer homem  que neste mundo é feito, lutou contra os burocratas da educação oficial, contra os moldadores de consciências. Tentou, como “ensinador”, mostrar aos rapazes e raparigas que a reciprocidade era o único princípio, e primeiro. Falhou. A ignorância e a mediocridade, em defesa do bom senso e dos bons valores, cresceram e falaram mais alto. Por uns tempos, os olhos d’água de António turvaram-se de cinzento.
   Agora, com os cabelos a aclararem e a alma ainda em fogo, António realiza na terra o que os seus olhos tanto sonharam. Tal e qual. Só, a apontar o céu. Firme. A única maneira de se ser homem em terra madrasta.
   Da sua terra amada vê o oceano a transformar-se, a abraçar a terra e a engoli-la. Os homens de olhos turvos não sabem para que serve o olhar.


Carlos Alberto Machado, in Novas Estórias Açorianas, Companhia das Ilhas, Novembro de 2016, pp. 77-78.

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