domingo, 8 de janeiro de 2017

PARABOLANOS

   Há coisa de 2000 anos (talvez nem tanto), quando o cristianismo tentava impor-se no mundo, havia uns tipos com mentalidade justiceira que impunham a moral à lei da pedra. Andavam literalmente com sacos de pedras pendurados à cintura, atirando sobre quem blasfemasse ou de algum modo se opusesse a uma concepção moral que tinha em Jesus na Terra a sua figura honorífica. O filho de Deus, que andara a apregoar o amor entre os homens, assistia assim a uma paradoxal defesa da sua mensagem: apedreje-se aquele que não amar seu semelhante. Enfim, são as contradições naturais de qualquer idolatria.
   Entretanto o mundo evoluiu, os homens passaram a idolatrar-se a si próprios e colocaram-se no lugar de deuses capazes de julgar os sentimentos dos outros (jamais os de si próprios, esses são inquestionáveis). Há pessoas que continuam a adornar a indumentária quotidiana com sacos de pedras, embora o façam lá na protecção das suas redes internéticas à distância que a cobardia permite. 
   Tornou-se comum, por exemplo, quando alguém manifesta pesar/indignação por um qualquer atentado, surgir de imediato uns seres prontos a apedrejar a manifestação de pesar/indignação com evidências aterradoras: lamentas este mas não lamentaste aquele. Na cabeça destas pessoas, deveríamos lamentar todos os atentados sem excepção como se fosse possível senti-los a todos de igual modo. 
   Pessoas que pensam assim merecem-me respeito, devem ter vidas verdadeiramente infelizes. É que a toda a hora, desde há muito, se verificam inúmeros atentados pelos quatro cantos do mundo. Devem passar a vida a lamentá-los, desconfio mesmo que não durmam. Ou se dormem, têm horríveis pesadelos, deitam-se com lamentos, sonham com lamentos, acordam com lamentos. 
   De facto, como não sentir da mesma maneira um atentado em Sukhothai ou em Paris? Só um hipócrita, na melhor das hipóteses um cínico, é que pode ser capaz de lamentar mais a morte de um parisiense do que de um habitante no lugar remoto de Sukhothai. Atiremos pedras ao cínico, apedrejemos o hipócrita, há que denunciar a sua baixa moral. 
   Tornou-se também vulgar assistir a todo o tipo de questionamentos face ao pesar pela morte de alguém. Quando alguém morre, é natural que surjam reacções à sua morte. Maioritariamente de pesar. Quem não gostou do defunto em vida, o mais que deve fazer à hora da morte do ser humano em causa é calar-se. Por uma questão de respeito, digo eu. Mas não é bem isso que sucede, os parabolanos do séc. XXI aí estão para nos denunciar todo o tipo de contradições. O silêncio já não tem qualquer valor, o respeito deixou de ser bonito. Quer-se tudo a conversar e a fazer muito ruído.
   Morre um artista e surgem no ar inúmeras memórias e partilhas da obra do artista. Tudo seria normal, não fosse vir logo um zelador da coerência lembrar-nos que nunca antes, enquanto o artista foi vivo, partilhámos o que quer que fosse desse mesmo artista ou sequer lhe fizemos a mais ínfima menção. Então agora toda a gente gosta do Prince? Pergunta o zelador, atirando-nos à cara a vergonha das nossas vidas. 
   A pessoas que deviam ter um pingo de bom senso na cabeça, ouvi eu dizer aquando da notícia da morte de George Michael: estou-me a cagar para o George Michael. Ninguém esperaria o contrário, mas seria no mínimo desejável que, à hora da morte do indivíduo, pelo menos um mínimo respeito pela perda prevalecesse e se manifestasse num silêncio indiferente. Já não chega a indiferença, é preciso fazer bandeira de si próprio: eu nunca gostei de George Michael e digo-o, não sou hipócrita, não é agora que ele morreu que vou dizer bem dele
   Ninguém esperava elogios, nem sequer ninguém estava minimamente interessado em saber se a obra de George Michael tinha alguma relevância na vida do Zé da Esquina que quer dizer ao mundo que jamais sentiu alguma coisa pelo autor de Wake me up before you go-go. Pela parte que me toca, se o Zé da Esquina fosse suficientemente inteligente para se manter calado, já seria uma bênção. Como não espero inteligência de um Zé da Esquina, que fosse pelo menos suficientemente modesto para perceber que a sua opinião não é relevante. É só mais ruído.
   Veja-se o que está a suceder com Mário Soares, outra espécie de artista. O homem acabou de morrer, já toda a gente o esperava. Teve influência no curso do país como poucos, foi duas vezes Presidente da República, uma vez reeleito com enorme popularidade. O mais normal e óbvio é haver quem lamente a sua perda. Eu, que nunca votei no homem nem era especial fã, lamento a perda e reconheço-lhe o valor de ter lutado contra o fascismo. Nada disto tem qualquer valor face à grande questão do parabolano moderno: então agora toda a gente gosta de Mário SoaresE logo começa o parabolano a atirar as suas pedras, umas mais consistentes do que outras, porque ou simplesmente ignorantes ou menos simplesmente ideológicas, atirando-nos à cara eventuais malfeitorias, defeitos, vícios do homem enquanto actor. 
   O parabolano tem pelo menos o mérito de nos fazer pensar os ínvios caminhos do moralismo na actualidade, a lógica rasteira, abstrusa e capciosa, diria mesmo burra do mais burro que pode haver, dos detentores da pós-verdade, enfim a palermice, o infantilismo, a patetice generalizada nas redes que proíbem maminhas ao léu mas aceitam todo o tipo de dejectos que um esgoto aceita sem que se verifique grandes incómodos com o estado da situação. De resto, são inúmeras as pessoas que tendem a aderir ao esgoto com evidente gosto e falta de espírito crítico. O que as torna apenas ainda mais coerentes com as suas práticas murídeas. Uma coisa é certa, quando morrerem ninguém o lamentará. 

4 comentários:

Cuca, a Pirata disse...

Amen, Amen!!

hmbf disse...

Allahu Akbar :-)

Susana Rodrigues disse...

Bolas, que me soube tão bem ler isto!
Não podia estar mais de acordo.
Abraço, hmbf.

Claudia Sousa Dias disse...

E roubo o post para terras facebookianas.