segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

RUMO


As mulheres caminham pela cidade transportando
um segredo incólume,
alheio à espessura das casas.
Esgueiram-se inteiras pelas vielas brancas,
a sombra fina do corpo cruzando o labirinto pardo
dos prédios.

As plantas, queimadas pelo mapa da cidade,
erguem-se pelo trânsito ardente com uma
memória ancestral colhida nos pés.
E o rumo dos seus passos é o traçado do segredo.

As mulheres transportam segredos como
cântaros,
inderramáveis no equilíbrio da cabeça,
o barro suportado pela coluna antiga da memória.

São andanças longínquas sem rastro na calçada,
uma certeza inquieta arrastada pelas ruas.
Segue a passagem esquecida rumo ao beco
parado.

As mulheres cantam cântaros no silêncio do
barro,
estranhamento do segredo na cabeça seguro e
salvo.
No colo a sabedoria surda,
salva pelo andar pressentido entre os muros.

Escuta:
o saber cego desses pés!
Escuta:
a integridade do barro e o seu silêncio!


Ana Horta (n. 1975), in Ínfimo Vento (2015). Autora discreta, Ana Horta tem livros publicados em pequenas editoras de poesia tais como Black Sun Editores (Inventa uma voz no rodopio do corpo, 2002) e Volta d’Mar (Ínfimo Vento, 2015). Cultiva uma poesia focada no feminino e na sua condição, conjugando um vitalismo luminoso com referências metafísicas de ordem diversa. Apesar de não estarem de todo ausentes, os temas quotidianos acabam secundarizados por uma manifesta obsessão pelo conflito ontológico que apõe a vida à morte. Nota-se, de igual modo, uma inclinação para paisagens naturais de onde surdem, por vezes como sombras indecifráveis, figuras de uma outra dimensão mais espiritual. A figura do anjo é, entre todas, a mais persistente.  

2 comentários:

manuel a. domingos disse...

desconhecia

sempre a aprender

abr
aço

maria disse...

fez-me lembrar Daniel Faria.