O título da edição original é simplesmente Bowie, tendo a
editora A Esfera dos Livros resolvido acrescentar à obra de Wendy Leigh o
epíteto de “biografia sentimental”. Para um fã do homem que assinou Space
Oddity, a leitura assemelha-se a uma digressão pelos expositores da imprensa
sensacionalista. Em suma, sexo, sexo, sexo e ainda mais sexo. Muito mais do que drogas,
apesar das doses industriais de cocaína, e do que rock’n’roll, apesar de Rebel Rebel. Ficamos com a ilusão de penetrar o núcleo privado da estrela. Apesar de
tudo, a sessão não chega a ser hardcore. Estará mais ao nível de E. L. James do
que de Henry Miller. A ter em conta: as mulheres mais importantes na vida de
Bowie foram Iman, com quem casou em 1992, Corinne «Coco» Schwab, gestora em
todas as áreas da vida pública e privada, e Angie, com quem esteve casado entre
1970 e 1980. O que sobra é uma amálgama de relações esporádicas e interesseiras
que pode desde logo ser resumida a isto: «David aventurou-se de uma experiência
sexual para outra, lançando-se em sexo gay, ménages à trois, sexo em grupo,
sexo com mulheres e depois, e talvez na mais inesperada experiência de todas,
no casamento monogâmico» (p. 19). A normalidade como a mais inesperada das experiências.
Para tal contribuíram uma libido insaciável
e, passo a citar, «um impressionante e muito gabado membro sexual» (p. 20). Seria
fastidioso elencar todos quantos provaram de tal membro, desde as mais variadas
estrelas a agentes com quem o compositor e actor tinha interesses não
exclusivamente sexuais, passando por groupies e até, em determinado momento, a
possibilidade de um cadáver que Bowie terá rejeitado em estado de choque. Desde cedo
com preferência por gente de pele escura, contrastando com a sua gabada
transparência, percorreu todos os tons e mais alguns até encontrar a felicidade
absoluta ao lado da modelo somali Iman Mohamed Abdulmajid. Logo na
adolescência, foi por causa de uma miúda que ficou com um olho de cada cor,
depois diz-se que dormiu com o manager Ralph Horton numa época em que a
homossexualidade era ainda ofensa criminal. Servindo-se de um muito sublinhado “carisma
sexual” (desconheço se a obra de José Sócrates abordará o tipo), caiu nos
braços de outro manager: Simon Napier-Bell. Quem seria o depredador? Quem seria a presa? Parece que naqueles tempos o sexo
era condição essencial para se ser agenciado. Naqueles tempos.
A ideia é que
David «tinha-se tornado um íman para os homossexuais e estava rodeado por um
círculo de admiradores masculinos» dos quais retirava proveitos e aproveitava
vantagens. Em suma, um oportunista agarrado ao membro, um manipulador da elite homossexual londrina, um tipo que «Longe de se mostrar tímido com os seus
consideráveis dotes genéticos, […] alegremente exibia o seu membro o máximo de
vezes que podia, e tanto em palco como fora dele usava as calças mais justas
que conseguia encontrar, de forma a mostrá-lo» (p. 70). A quem estivesse
interessado em vê-lo, poder-se-ia acrescentar. Mas Wendy Leigh não está interessada
em acrescentos, preferindo citar Angela Bowie, que alcunhou o membro de David
como «a lança do amor», para concluir que nada de amor havia no tesão
incomensurável: «Nesses anos iniciais em que estava a tentar subir a escada
para o sucesso, o seu impressionante membro provaria ser um dos seus trunfos
mais valiosos quando se tratava de lidar com uma quantidade de homossexuais
presentes no mundo da música, ficando todos fixados nele e naquela sua larga
vantagem para a vida» (pp. 70-71). David flirtava como método, seguindo-se a
cama como experiência, acabando tudo consumado no trabalho enquanto fim.
Era um
“malabarista sexual”, segundo Mary Finnigan, «muito bem dotado nos
genitais» (p. 86). E continua: «Ele não era o tipo de homem que precisava de
fazer amor todas as noites, mas quando acontecia durava horas e horas» (p. 86).
Tal aritmética da sentimentalidade leva-nos a questionar como lhe sobraria
tempo para o trabalho. Tantas foram as horas de cama, que chega a ser
inacreditável como conseguiu o homem escrever canções, fazer filmes,
representar em peças teatrais, dar concertos… «Dana Gillespie (…) [e Ava
Cherry] era uma das raparigas que regularmente tinham ménages à trois com David
e Angie» (p. 95). O casal criava “uma teia de aranha sexual” que levou Angie a dizer numa entrevista:
«Passei os melhores momentos e os momentos mais felizes com a minha equipa de
rorting. Rorting significa comer miúdas. Estávamos quatro ou cinco tipos e eu,
e tudo o que tínhamos de fazer era escolher as miúdas e ver quem era o primeiro
a conseguir meter-se dentro delas» (105). Pelo meio, na companhia do marido,
divertiam-se a conquistar o maior número possível de rapazes e de raparigas para
brincadeiras sexuais. Mas não estamos apenas no domínio da brincadeira, o acto
envolvia trabalho e espiritualidade, o sexo era uma constante que levava David, segundo Cherry
Vanilla, a fazer amor com todas as pessoas que trabalhassem para ele. Imagine-se
a trabalheira.
Heliogábalo do seu tempo e no seu meio, «não fodia apenas, ele
fazia amor» (conversa de groupie), um amor tão universal que chegava para
todos os envolvidos numa orgia, mesmo para aqueles que David abandonava depois
de já não precisar deles. Todos recompensados por poderem ter estado nas mãos
do Deus maior. Chega a falar-se em magia branca, induzida pela cocaína, e sistema
de crenças, numa lógica sexual. Até que um dia pareceu a mulher dos seus
sonhos, com quem casou, teve uma filha e foram felizes para sempre. E assim
ficamos a perceber o que é uma biografia sentimental. É isto, estas histórias, estes retratos caricaturais de uma vida que parece nunca ter saído de onde foi gerada: da genitália.
3 comentários:
O seu esclarecedor artigo, ínclito Autor, deixa-me na maior apreensão, dado que me chegou a informação, de fonte fidedigna, de estar iminente a libertação dos prelos de «Os Papéis Perdidos de Catatau Vincennes». E não sei - forçoso é dizê-lo! - se o País está preparado...
Sou,
Júlio Bernardo o Velho.
O país que teve Soriano estará preparado para tudo: http://universosdesfeitos-insonia.blogspot.pt/2014/01/obras-no-panteao.html
Considerado Autor, agradeço, penhorado, a consideração com que me alvejou, partilhando a sua gentil e deveras pertinente ficha. Bem sabemos que o País está preparado para muita coisa mas, não asseguramos no íntimo – é essa a verdade, em suma, estimado Autor – quando baixamos à sentina e consentimos nas mais periclitantes divagações, se estará preparado para tudo. Tenho as minhas dúvidas, tenho as minhas dúvidas, “hélas!”. Temo, assim, digo-o com toda a desarmada franqueza, que «Os Papéis Perdidos de Catatau Vincennes» possam incluir mangalhices semelhantes às de Junqueiro, dado que o iminente pensador era – e suspeito que permaneça – dolente adepto das vertiginosas elucubrações de sentido etílico. Nada mais nos resta, pois, senão esperar, com justificada ansiedade, a eminente – diz-se – chegada aos templos comerciais do saber desses «Papéis Perdidos de Catatau Vincennes». Mas enfim, de passos perdidos está de há muito feita a dor nacional. Aceite os meus mais sinceros protestos de estima e admiração.
Sou,
Júlio Bernardo o Velho.
Enviar um comentário