Jacques Roubaud (n. 1932) não é totalmente desconhecido
dos leitores de poesia portugueses. Em 1993, alguns poemas do mais celebrado
dos seus livros foram incluídos na antologia Sud-Express – Poesia Francesa de
Hoje (Relógio D’Água) com tradução de Urbano Tavares Rodrigues. Quelque chose noir, originalmente publicado em 1986, aparece agora integralmente traduzido
por José Mário Silva, e com prefácio de Gonçalo M. Tavares, na colecção de poesia
da Tinta-da-China. Talvez não seja descabido recordarmos algumas palavras que
lhe foram dedicadas na Introdução de Etienne Rabaté a Sud-Express: «Quelque
chose noir, de que propomos aqui um excerto, representa o êxito de um raro equilíbrio
entre a composição sábia e a perfeita lisibilidade, entre a discrição e a
violência da emoção, entre o trabalho formal da página, ritmo e disposição
gráfica, e a continuidade do livro onde cada pormenor tem o seu lugar».
A síntese de Rabaté é perfeita, desanuvia-nos a
interpretação e permite-nos fruir o que há nesta poesia de mais intenso. A
estrutura rígida não deve iludir-nos, sobretudo quando sabemos ter o autor estudado
matemática. O aspecto geral da distribuição dos textos, em nove secções
compostas por nove poemas, é devedor das premissas fundadoras de OuLiPo, a
corrente literária a que Roubaud pertenceu ao lado de escritores como Georges
Perec e Raymond Queneau. Defendia-se então a vantagem dos constrangimentos
técnicos enquanto accionadores de uma libertação literária. Mas em boa verdade,
os poemas deste livro encontram-se atravessados por uma fortíssima tensão
existencial que pouco tem que ver com forma. Está antes na origem de toda a
literatura, senão de toda a arte, e de algum modo pode representar-se colocando
lado a lado as figuras do amor e da morte.
Alix Cleo Roubaud, nome próprio transformado em verso, é já
uma substância indefinida que se mistura com toda a obra como a neblina a tomar
conta do espaço. Faleceu aos 31 anos, deixando nas mãos do seu amante um
conjunto vasto de fotografias a partir das quais muitos destes poemas foram
escritos. O sentimento de perda redunda aqui numa experiência afásica de índole
depressiva, estando latente - na forma como as palavras se articulam entre si
no corredor dos versos - o esforço da lógica face ao desespero. O grande
combate travado neste livro é, pois, entre a razão que subjaz à linguagem e a
emoção que de algum modo sustenta a poesia. As imagens convocadas surgem
afectadas pelo negrume, embora invoquem elas mesmas momentos de luz. Assim
sendo, a mais paradoxal das relações aqui estabelecidas exerce-se entre o olhar
da fotógrafa falecida e o que nesse olhar pode ser observado pelo olhar turvo
do amante que a recorda, alucina, nega, desespera.
É também este um percurso catártico, no decurso do qual o
autor tenta compreender-se a si próprio organizando a sua arte: «Insisto em
circunscrever o nada-tu com exactidão, esses dois pólos impossíveis, a andar à
volta disso com estas frases novas a que chamo poemas» (137). Estamos num limbo
interior desafiador da sintaxe e do sentido, provocador de paradoxos e de
absurdos, num limbo onde o princípio da não-contradição perde validade por já
não ser suficiente para delimitar os graus de manifestação de um conceito. A
amada é e não é ao mesmo tempo, vive e não vive, a morte ainda não foi porque
ele ainda é, ainda a sente dentro dele, a morte dela começou no corpo dela, mas
ainda não acabou no corpo dele, portanto é ainda uma não-morte, uma morte inacabada.
Parece um jogo, talvez seja um jogo.
Tendendo tudo para um nada precedido de dúvida, a poesia
surge neste livro como a voz escutada a partir do gravador, o rosto contemplado
a partir da fotografia. Não é o verdadeiro, não é o falso, é qualquer coisa de
intermédio, crepuscular, cinzento, uma sombria luminosidade, a luz de uma
sombra. Não por acaso, alguns dos mais belos poemas deste livro são altamente elípticos.
O silêncio que se intromete entre as palavras captura o leitor para um
labirinto de sentidos não referenciados, justamente sugeridos pela ausência,
pela aproximação a um não-ser vivo, tão vivo quanto as coisas materiais. Uma
aproximação pela meditação:
Meditação da indistinção, da heresia
a Jean Claude Milner
Há três suposições. a primeira, não é demais dar-lhes uma
ordem, é que já não existe. não a nomearei.
Uma segunda suposição é a de que nada poderia ser dito.
Uma outra suposição, por fim, é que nada a partir de
agora lhe é semelhante. esta suposição destitui tudo o que estabelecia uma
ligação.
De algumas destas suposições deduzem-se, sem pertinência,
proposições em cadeia.
De que nada a partir de agora lhe é semelhante
concluiremos que só há dissemelhança e dessa conclusão deduziremos que não há
qualquer relação, que nenhuma relação é definível.
Concluiremos pela improcedência.
Tudo se suspende no ponto em que surge uma dissemelhança.
e a partir daí alguma coisa, mas alguma coisa negro.
Pela simples reiteração, já não existe, os todos
desfazem-se no seu tecido abominável: a realidade.
Alguma coisa negro que se fecha. e se tranca. uma deposição
pura, inacabada.
Jacques Roubaud, in Alguma Coisa Negro, tradução de José
Mário Silva, Edições Tinta-da-china, Fevereiro de 2017.
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