sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

ALGUMA COISA NEGRO

Jacques Roubaud (n. 1932) não é totalmente desconhecido dos leitores de poesia portugueses. Em 1993, alguns poemas do mais celebrado dos seus livros foram incluídos na antologia Sud-Express – Poesia Francesa de Hoje (Relógio D’Água) com tradução de Urbano Tavares Rodrigues. Quelque chose noir, originalmente publicado em 1986, aparece agora integralmente traduzido por José Mário Silva, e com prefácio de Gonçalo M. Tavares, na colecção de poesia da Tinta-da-China. Talvez não seja descabido recordarmos algumas palavras que lhe foram dedicadas na Introdução de Etienne Rabaté a Sud-Express: «Quelque chose noir, de que propomos aqui um excerto, representa o êxito de um raro equilíbrio entre a composição sábia e a perfeita lisibilidade, entre a discrição e a violência da emoção, entre o trabalho formal da página, ritmo e disposição gráfica, e a continuidade do livro onde cada pormenor tem o seu lugar».
A síntese de Rabaté é perfeita, desanuvia-nos a interpretação e permite-nos fruir o que há nesta poesia de mais intenso. A estrutura rígida não deve iludir-nos, sobretudo quando sabemos ter o autor estudado matemática. O aspecto geral da distribuição dos textos, em nove secções compostas por nove poemas, é devedor das premissas fundadoras de OuLiPo, a corrente literária a que Roubaud pertenceu ao lado de escritores como Georges Perec e Raymond Queneau. Defendia-se então a vantagem dos constrangimentos técnicos enquanto accionadores de uma libertação literária. Mas em boa verdade, os poemas deste livro encontram-se atravessados por uma fortíssima tensão existencial que pouco tem que ver com forma. Está antes na origem de toda a literatura, senão de toda a arte, e de algum modo pode representar-se colocando lado a lado as figuras do amor e da morte.
Alix Cleo Roubaud, nome próprio transformado em verso, é já uma substância indefinida que se mistura com toda a obra como a neblina a tomar conta do espaço. Faleceu aos 31 anos, deixando nas mãos do seu amante um conjunto vasto de fotografias a partir das quais muitos destes poemas foram escritos. O sentimento de perda redunda aqui numa experiência afásica de índole depressiva, estando latente - na forma como as palavras se articulam entre si no corredor dos versos - o esforço da lógica face ao desespero. O grande combate travado neste livro é, pois, entre a razão que subjaz à linguagem e a emoção que de algum modo sustenta a poesia. As imagens convocadas surgem afectadas pelo negrume, embora invoquem elas mesmas momentos de luz. Assim sendo, a mais paradoxal das relações aqui estabelecidas exerce-se entre o olhar da fotógrafa falecida e o que nesse olhar pode ser observado pelo olhar turvo do amante que a recorda, alucina, nega, desespera.   
É também este um percurso catártico, no decurso do qual o autor tenta compreender-se a si próprio organizando a sua arte: «Insisto em circunscrever o nada-tu com exactidão, esses dois pólos impossíveis, a andar à volta disso com estas frases novas a que chamo poemas» (137). Estamos num limbo interior desafiador da sintaxe e do sentido, provocador de paradoxos e de absurdos, num limbo onde o princípio da não-contradição perde validade por já não ser suficiente para delimitar os graus de manifestação de um conceito. A amada é e não é ao mesmo tempo, vive e não vive, a morte ainda não foi porque ele ainda é, ainda a sente dentro dele, a morte dela começou no corpo dela, mas ainda não acabou no corpo dele, portanto é ainda uma não-morte, uma morte inacabada. Parece um jogo, talvez seja um jogo.
Tendendo tudo para um nada precedido de dúvida, a poesia surge neste livro como a voz escutada a partir do gravador, o rosto contemplado a partir da fotografia. Não é o verdadeiro, não é o falso, é qualquer coisa de intermédio, crepuscular, cinzento, uma sombria luminosidade, a luz de uma sombra. Não por acaso, alguns dos mais belos poemas deste livro são altamente elípticos. O silêncio que se intromete entre as palavras captura o leitor para um labirinto de sentidos não referenciados, justamente sugeridos pela ausência, pela aproximação a um não-ser vivo, tão vivo quanto as coisas materiais. Uma aproximação pela meditação:

Meditação da indistinção, da heresia

a Jean Claude Milner

Há três suposições. a primeira, não é demais dar-lhes uma ordem, é que já não existe. não a nomearei.

Uma segunda suposição é a de que nada poderia ser dito.

Uma outra suposição, por fim, é que nada a partir de agora lhe é semelhante. esta suposição destitui tudo o que estabelecia uma ligação.

De algumas destas suposições deduzem-se, sem pertinência, proposições em cadeia.

De que nada a partir de agora lhe é semelhante concluiremos que só há dissemelhança e dessa conclusão deduziremos que não há qualquer relação, que nenhuma relação é definível.

Concluiremos pela improcedência.

Tudo se suspende no ponto em que surge uma dissemelhança. e a partir daí alguma coisa, mas alguma coisa negro.

Pela simples reiteração, já não existe, os todos desfazem-se no seu tecido abominável: a realidade.

Alguma coisa negro que se fecha. e se tranca. uma deposição pura, inacabada.



Jacques Roubaud, in Alguma Coisa Negro, tradução de José Mário Silva, Edições Tinta-da-china, Fevereiro de 2017.

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