Os textos de Bertolt Brecht recentemente recuperados pelo
encenador Luís Varela para o Teatro da Rainha foram escritos em cima dos
acontecimentos que procuram representar, tornando-se com o tempo exemplos
paradigmáticos da arte enquanto testemunho. Não são, porém, textos datados.
Tanto Dansen como Quanto Custa o Ferro?, parábolas engendradas por volta de
1939, as mais conhecidas dos textos acoplados em Europa 39, reflectem situações
concretas que facilmente identificamos com o clima político vivido às portas da
II Grande Guerra, mas transpõem as fronteiras da História ao exercerem sobre o
público a sua função primordial de despertar consciências.
Numa época avessa ao
espírito crítico, é especialmente gratificante constatar esta obstinada conduta
de quem procura conciliar, com inteligência, entretenimento e agitação do
pensamento. É óbvio que no teatro de Brecht havia tanto de preocupações
ideológicas como pedagógicas, ambas respeitadas no espectáculo agora em cena
desde logo na montagem dos textos, a qual logra estabelecer uma ligação de
coerência entre as diferentes circunstâncias narrativas, anulando desse modo eventuais
descontinuidades entre as peças encenadas. Mas a par de tais preocupações
vislumbramos também uma dimensão paródica que reforça o desejo de provocar emoções no
espectador.
Tomemos de exemplo Dansen, diálogo entre um vendedor de porcos e
uma estranha e sinistra personagem. Respeitam-se no cenário as fachadas das
casas, simbólicas representações de países prestes a serem assaltados pelo
estranho em palco. Com uma caracterização algures firmada entre os comics e o
Darth Vader de Star Wars, as personagens mantêm entre si o diálogo original. As
alusões às posições ambíguas de neutralidade assumidas por alguns dos vizinhos da
Alemanha no início da II Grande Guerra manifestam-se num Dansen com aspecto de
palhaço, vacilante, medroso, ingénuo. O estranho é uma figura intimidante e
ríspida, desdenha dos contratos estabelecidos entre o vendedor de porcos e os
seus vizinhos, mas coage-o a firmar consigo um pacto de amizade que não
hesitará em romper quando precisar de invadir o depósito de ferro de Svensson guardado
por Dansen. Seria desaconselhado julgarmos as decisões deste vendedor de
porcos, traído tanto pelo egoísmo como pela cobardia.
Com os nomes ligeiramente
alterados para que seja mais fácil ao espectador actual identificar os países
em cena, o humilde negociante de ferro que aparecerá em Quanto custa o ferro? é
a personificação da Suécia que no decorrer das hostilidades nazis negociou com
a Alemanha grandes quantidades de minério de ferro. Ora, a guerra como
oportunidade de negócio não foi fenómeno exclusivo de uma só guerra. Note-se,
na actualidade, como a guerra há tempos engendrada contra o terror tem
fomentado as indústrias do armamento e da segurança, para não falarmos das obscuras
e promíscuas redes de financiamento do arqui-inimigo declarado.
No seu
todo, este Europa 39 desperta no espectador a consciência da actualidade a
partir de exemplos históricos. Nem a ingenuidade oportunista e cobarde de Dansen
ficou no passado, nem a neutralidade sueca foi um exemplo isolado que iliba de
responsabilidades todos quantos não souberam a seu tempo prevenirem-se e unirem-se
contra o mal à vista. Entretidas com discussões de café, celebrações
futebolísticas e selfies a rodos para partilha nas redes sociais, as massas
representadas no termo de Europa 39 levam-nos a concluir ser apenas simbólica a
data evocada no título.
Os quatro actores que em palco se desdobram em
múltiplas personagens são, deste modo, um exemplo de resistência. Reside neles um factor de estranheza
nestes tempos que correm, pois com o seu trabalho procuram levar a cabo a mais nobre das intenções dramáticas de Bertolt Brecht: despertar a consciência crítica dos
espectadores. Admirável é a obstinação com que o fazem, pois nada no nosso
tempo joga a favor deles, tudo parece estar muito mais a favor do ameaçador estranho
que desdenha dos contratos, chame-se ele Wilders, Le Pen, Orbán, Farage ou Trump.
Com o desinteresse e a neutralidade que, lá está, não isentará ninguém de
responsabilidades quando o mal lhes bater à porta. Citando o lavrador de uma
outra peça de Brecht: «Em sanguinárias guerras de odiosa memória / Aqui está o
melhor: uma planta que vive!» Fiquemos atentos.
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