sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

CHENAVARD

Um pormenor da tragédia divina, a morte de um deus. Paul-Marc-Joseph Chenavard não inspira cuidados, foi confinado às curiosidades do museu. Ninguém o cita, ninguém o refere, ninguém lhe dedica poemas, ninguém se lembra sequer de o colocar entre os que previram o fim. As crianças desfilam com seus trajes carinhosamente preparados. Lembro-me de quando era criança, da dedicação investida por minha mãe num traje que nunca consegui exibir. Tive desde muito cedo aversão a máscaras, não consigo ver o mundo senão por um olhar despido de lentes. Também eu projecto fins, já num tempo antevisto por Chenavard. Pequenos deuses desfilam agora seus trajes, seguem em fila pelas ruas da cidade, aplaudidos, fotografados, motivando sorrisos, comentários com tanto de ternura como de graça. Neles subsiste a força desmaiada das divindades, deuses de palmo e meio a cortarem o trânsito, impedindo a passagem de quem como eu carrega ainda o peso das coisas sagradas numa mente delirante. Deuses e foliões, uma mesma raiz para distintos credos. Chenavard viveu no século XIX, nele ainda pesaram os deuses. Assistiu ao assassínio do sagrado e registou-o, levando Baudelaire a considerá-lo um digno representante da decadência. Largada a auréola na lama, restava-nos então o homem. Este homem que hoje desfila disfarçado de humano. No caudal absurdo da actualidade, tendo a prezar o Carnaval como um momento raro de verdade. Parece um paradoxo, mas é mascaradas que as pessoas surgem mais autênticas. Eu, que sempre detestei mascarados e desprezo histriões.  

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