sábado, 18 de fevereiro de 2017

EMPÉDOCLES POR BRECHT


A SANDÁLIA DE EMPÉDOCLES

1

Quando Empédocles de Agrigento
Ganhara a veneração dos seus concidadãos juntamente
Com os achaques da velhice,
Resolveu morrer. Mas, como ele
Amava alguns, de quem por sua vez era amado,
Não desejava definhar em frente deles, mas antes
Desfazer-se em nada.
Convidou-os para uma excursão, não a todos,
Omitiu um ou outro, para assim na escolha
E na empresa comum
Misturar o acaso.
Escalaram o Etna.
A canseira da subida
Trouxe consigo o silêncio. Ninguém deu pela falta
De palavras sábias. No cimo
Tomaram fôlego, pra recuperar o pulso costumado,
Ocupados com as vistas, contentes de chegarem à meta.
Sem que o notassem, o Mestre abandonou-os.
Quando de novo começaram a falar, ainda não
Notaram nada, apenas mais tarde
Deram por falta aqui e além duma palavra, e olharam em volta em busca dele.
Mas ele ultrapassara há muito já o cume do monte,
Sem grandes pressas. Uma vez
Parou, e ouviu
Como ao longe, lá para trás do cume,
A conversa recomeçava. As palavras isoladas
Já se não compreendiam: o morrer começara.
Em pé junto à cratera,
De face voltada, sem querer saber mais daquilo
Que já lhe não dizia respeito, o velho inclinou-se devagar,
Desatou com cuidado a sandália dum dos pés e atirou-a sorrindo
Pra o lado a uns passos de distância, de forma a não ser achada
Depressa de mais, mas ainda a tempo, isto é:
Antes de apodrecer. Só então
Foi para a cratera. Quando os seus amigos
Sem ele e buscando-o ainda, tinham voltado,
Começou gradualmente, através das semanas próximas e dos meses,
A sua morte, como ele tinha desejado. Havia ainda alguns
Que esperavam por ele, enquanto outros já
O davam por morto. Inda alguns retinham
As suas perguntas até ao seu regresso, enquanto outros
Buscavam eles mesmos a solução. Devagar, como as nuvens
Se afastam no céu, imutáveis, apenas mais pequenas
E mais recuadas, quando se não olha para elas, mais
Longínquas quando de novo se procuram, talvez já confundidas
Com outras, assim ele se afastava dos costumes deles, costumadamente.
Então levantou-se um boato:
Ele não morreu, porque não era mortal — dizia-se.
O mistério envolvia-o. Considerava-se possível
Que além do terreno houvesse outra coisa, que o curso do humano
Se modificasse para o indivíduo: tal o falatório que correu.
Mas nesta altura achou-se a sandália, de couro,
Tangível, usada, terrena! Deixada para aqueles
Que, quando não vêem, começam logo a acreditar.
O fim dos seus dias
Foi de novo natural. Morrera como qualquer outro.


Outros porém descrevem o caso
De outra maneira: Este Empédocles
Tinha realmente tentado assegurar-se honras divinas
E por uma evasão misteriosa, por uma astuta
Queda no Etna sem testemunhas, quisera dar fundamento
À lenda de que não era de condição humana, nem sujeito
Às leis da dissolução. E nisto,
Eis que a sandália lhe pregara a partida de vir cair em mãos humanas.
(Alguns dizem até que a própria cratera, irritada
Por tal procedimento, tinha simplesmente cuspido
A sandália do degenerado.) Mas nós antes julgamos:
Se ele na verdade não descalçou a sandália, então antes se esquecera
Da nossa estupidez e não pensara quão depressa
Queremos fazer ainda mais escuro o que já é escuro e preferimos
Crer no absurdo a buscar uma razão suficiente. E então o monte —
Aliás não irritado por tal descuido ou por crer
Que ele nos quisesse enganar para embolsar honras divinas
(Pois o monte não crê nada e não se ocupa de nós)
Mas muito simplesmente a cuspir fogo como sempre — ter-nos-ia atirado
A sandália, e assim os discípulos —
Ocupados já a farejar um grande mistério,
A desenvolver profunda metafísica, ocupadíssimos! — de repente
Inquietos, tomaram a sandália do Mestre nas mãos, a sandália tangível,
Usada, de couro, terrena.


Bertolt Brecht (n. 10 de Fevereiro de 1898, Augsburgo, Alemanha - 14 de Agosto de 1956, Berlim Leste) in Poemas e Canções, trad. Paulo Quintela, Livraria Almedina, Outubro de 1975, pp. 212-214.

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