domingo, 5 de fevereiro de 2017

[Levamos os cigarros à boca da medula]


Levamos os cigarros à boca da medula
e é por ela que fumamos o ruído das nossas
vidas de cinza digo agora que também eu
recomecei a fumar.

E é falso dizeres
que esse silêncio que teces é o mesmo
dos teus dezanove anos parece-me a mim
que arranho o meu até à ferida.

Encostas o corpo à matemática do mundo
eu encosto o corpo ao nada que me assiste
e procuramos na noite qualquer coisa
que já nem nos pertence é provável

delapidações pedras mansas
esta forma tão doente de viver.

Ainda que sustemos a escuridão apenas
com cafés e ginger ale's e cigarros
que se apagam de um minuto para o outro
tão barato e mau é o tabaco

e ainda que acabemos por desistir
do último cigarro que nunca fumaremos

esse que nos traria a explicação da noite
da luz das palavras do silêncio do ardor do desejo
com a certeza de que o dia seguinte começará 
muito próximo do fim.


António Amaral Tavares (n. 1964), in Movimento de Terras (2016). Reuniu os primeiros livros e alguns inéditos ulteriores em Movimento de Terras (Língua Morta). A doença e a morte são obsessões temáticas que percorrem o volume, num registo que tanto entra em diálogo com obra alheia (pintura, música, cinema) como parece denotar elementos biográficos dispersos. De um complexo lexical recorrente sobressaem vocábulos tais como vidro, cão, domingo, em relações sinonímicas bastante abertas, oferecendo aos poemas uma inegável consistência imagética ao mesmo tempo que indicam universos íntimos de difícil interpretação. Raramente linear, a poesia de António Amaral Tavares surge de um lugar onde a realidade se perspectiva entre sombras. Solidão e medo, enquanto núcleos emocionais determinantes, surgem assim acompanhados de substâncias capazes de solidificar a dimensão mental dos conceitos. Já não importa o sentido das palavras, mas sim a expressão do modo como elas são sentidas num corpo castigado pela desordem. 

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