segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

UM POEMA DA LOUCURA: Nietzsche

SÓ LOUCO! SÓ POETA!

Em ar diáfano,
quando já o consolo do orvalho
ressuma sobre a terra,
invisível e também sem se ouvir
- pois o consolador orvalho traz,
como todos os suavizadores, calçado leve -
lembras-te então, lembras-te, ardente coração,
da tua sede de outrora,
sede de lágrimas celestes e de orvalhos,
tu crestado e cansado,
enquanto sobre atalhos de erva seca
maldosos olhares do sol da tarde
em torno de ti corriam por entre árvores negras,
olhares de sol em brasa, cegantes e cínicos.

«Pretendente da Verdade - tu?» assim eles te escarneciam -
«Não! só um Poeta!
um bicho, manhoso, de rapina, rastejante,
que tem de mentir,
que ciente e voluntariamente tem de mentir,
ávido de presa,
de disfarces multicores,
de si mesmo disfarce,
de si mesmo presa,
isso - Pretendente da Verdade?...

Só Louco! só Poeta!
Dizendo só coisas multicores,
falando multicor por máscaras de louco,
trepando sobre pontes mentirosas de palavras,
sobre arcos-íris de mentiras
entre falsos céus
vagueando, rastejando -
só Louco! só Poeta!...

Isso - Pretendente da Verdade?...
Não calmo, hirto, liso, frio,
feito imagem,
pilar de Deus,
não erguido em frente aos templos,
guarda-portão de um Deus:
não! hostil a tais estátuas da virtude,
em qualquer ermo mais em casa do que em templos,
cheio de maldade de felino
a saltar por qualquer janela
zás! pra qualquer acaso,
fariscando cada floresta virgem,
que tu em florestas virgens
entre feras de jubas variegadas
pecaminosamente são e belo e variegado corresses,
de beiçarra lúbrica,
feliz-escarninho, feliz-infernal, feliz-sanguinolento,
corresses rapinando, rastejando, mentindo...

Ou igual à águia que longa,
longamente olha hirta pra os abismos,
pra os seus abismos...
- Oh! como eles se encaracolam
lá pra baixo, pra dentro,
em profundas cada vez mais fundas! -

Então,
de repente,
em voo directo,
mergulho de um golpe,
cair a fundo sobre cordeiros
veloz, voraz,
ávida de cordeiros,
hostil a todas as almas de cordeiros,
com raiva feroz a tudo quanto olha
com olhos virtuosos, de carneiro, de lã crespa,
a toda a estupidez da benquerença-de-leite-de-cordeiro.

Assim
aquilinas, de pantera,
são as nostalgias do poeta,
são as tuas nostalgias sob milhentas máscaras,
ó Louco! ó Poeta!

Tu, que olhaste o homem
tanto deus como carneiro -,
rasgar o deus no homem
como o carneiro no homem
e rir ao rasgar -

isso, isso é que é a tua ventura,
ventura de pantera e de águia,
ventura dum Poeta e dum Louco!»...

Em ar diáfano,
quando já a foice da lua
verde entre rubores purpúreos
e invejosa rasteja,
- hostil ao dia,
a cada passo secretamente
ceifando ao longo de leitos pendentes
de rosas, até elas caírem,
até caírem pálidas noite abaixo:

assim caí eu mesmo um dia
da minha Loucura-da-Verdade,
das minhas Nostalgias-do-Dia,
cansado do dia, doente da luz,
- caí, pra baixo, para a noite, para a sombra,
queimado e sedento
de Uma Verdade
- lembras-te ainda, lembras-te, ardente coração,
da sede que então tinhas? -
Oh! fosse eu banido
de toda a Verdade!
Só Louco! Só Poeta!...


Friedrich Nietzsche, in Poemas, trad. de Paulo Quintela, Galaica, Porto, 1960, pp. 7-13.

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