Há-de surgir o dia em que a memória
será um salão vago de onde levaram
os móveis, os espelhos, o riso que ecoava,
e os rios deixarão de correr só um momento
e um veleiro arderá suspenso em suas rotas
com uma chama fria, foto de um instante
congelado no tempo em que os rostos são
uma pira, onde o lume de neve os queimará
sem ruído e sem pena, porque tudo se gasta,
e as palavras, que deram nome a seres e a coisas,
serão a nulidade mais cansada
e, por tanto as saber, as escusava,
e nada ser verdade senão a hora breve,
mesmo essa sem mais importância,
que é de imagens que os olhos sobrevivem
e fugazes se tenham ido a correr,
a ninguém pertencendo, nem mesmo a elas,
porque o passado então será
inútil o futuro, e o presente arderá,
e rio-me com esta subversão, este fósforo,
esta chama de tempo confuso
diante de um antigo deus que usava
lítico em seus altares
o tempo como um ceptro poderoso.
Nuno Dempster (n. 1944), in Dispersão - Poesia Reunida (2008). Estreia tardia, porém ousada, com um extenso volume de
poemas reunidos intitulado Dispersão. Seguiram-se diversas recolhas, mais
breves, mas invariavelmente competentes nos domínios temático e formal: Londres
(2010) – poema longo marcado pela confluência de tempos distintos num só espaço
-, K3 (2011) – extraordinária evocação da guerra colonial portuguesa -, Pedro e
Inês: Dolce Stil Nuovo (2011) – depurada desconstrução do mito amoroso -,
Elegias de Cronos (2012) – desmistificação do presente à luz de um passado
heróico -, Na Luz Inclinada (2014) – o tempo, sempre o tempo, pautado por uma
saturada passagem das estações. A publicação tardia confere a esta poesia uma
espécie de exílio geracional, potenciado pelo distanciamento crítico da actualidade
que se empenha em reflectir o mundo sem resvalar para os abismos decadentistas
de muita da produção poética corrente. Irónica quanto baste, não prescinde de
uma lente clássica que oferece os contrastes da História, exercendo desse modo
uma espécie de recuperação/conservação do belo que é outra forma de resistência
no interior do caos. Memórias pessoais dialogam com obras alheias, numa proficiente
“polemização” interior da qual sai sempre a ganhar o leitor.
2 comentários:
Há poetas que não se gastam e ele é um deles. Belíssimo o teu texto também, Henrique.
Obrigado.
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