quinta-feira, 23 de março de 2017

BAIRRO

O Luís regressou ao bairro. E enquanto regressava, foi anotando o que se perdeu, o que se mantém, foi recordando, constatando o quão impossível é reviver. Não há glória alguma nestes regressos, a memória é uma função que apenas nos liberta do esquecimento. O mais é derrota, nostalgia, a puta da saudade. Sobram como fogachos “breves imagens vivas” (roubo a expressão a Breton). Há tempos, também regressei ao meu bairro. A fachada da casa onde vivi os primeiros 11 anos mantinha-se, mas o asfalto percorrido era outro, a envolvência era outra, os cheiros eram outros. No meu bairro já ninguém coze o pão, a tasca onde bebi as primeiras ginjas desapareceu, os olivais deram lugar a mais casas, o areal deu lugar a mais casas, o pântano deu lugar a mais casas. Desci ao açude para ver o rio, mas encontrei apenas um charco. Lama, canaviais, hortos ao abandono. Apenas dois patos grasnavam, fazendo emergir lá dos fundos da memória circunstâncias difusas. Duas bicas secas, uma de líquido amniótico, outra de sangue. Infindável matéria de poesia, estas coisas que se perdem e se tornam ruína. O tempo é em si mesmo uma elegia. Os escombros estão na moda, nunca antes se sublimou tanto a desolação da paisagem. Pessoas reencontradas são incapazes de falar do presente, as palavras não saem, tudo aponta para o passado. Lembras-te quando?... Achados e perdidos, Portugal em ruínas, abandonados, toda uma estética da devastação popularizada em horário nobre. Nostalgia, saudade. Há que fechar a janela à saudade:


janela

passei pela rua
olhei a janela
já não vives aqui
foste embora
fechaste a janela
para sempre



Luís Paulo Meireles, in bairro, volta d’mar, Junho de 2016, s/p.

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