Não é segredo para ninguém, até porque o próprio fez
questão de registá-lo em diversas ocasiões, que John Fante (n. 1909 – m. 1983)
foi a maior influência literária de Charles Bukowski (n. 1920 – m. 1994). Ambos
filhos de emigrantes, praticaram uma escrita fortemente autobiográfica e
coloquial. Mas se em Fante ainda vislumbramos um sentido poético da existência,
em Bukowski essa poética dá lugar a um hiperbólico desencanto. O álcool era
outra matéria que os aproximava, embora no autor de Post Office (1971) o alter-ego
Henry Chinaski faça de Arturo Bandini um copinho de leite. Em Bandini conseguimos
ainda encontrar um forte elo familiar, a manifestação de um respeito pelas
origens que Chinaski renega por completo. O Bandini de John Fante é sonhador,
tem uma postura autocrítica que não chega a ser autodestrutiva, coloca a actividade
de escritor num horizonte atingível. O Chinaski de Bukowski é essencialmente
autodestrutivo, tem também a escrita por horizonte mas pelo meio enfia-se num
labirinto de álcool, putas e jogo do qual parece não haver saída. Ambos os autores
têm vindo a ser profusamente publicados em língua portuguesa nos últimos anos. Mais
recentemente, a Alfaguara vem-lhes prestando especial atenção.
Com tradução de Rita Canas Mendes, Cheio de Vida (Outubro
de 2016) desvia-se da saga que tem Arturo Bandini como protagonista. A
Primavera Há-de Chegar, Bandini (Ahab, 2010) surgiu originalmente em 1938.
Seguiram-se Pergunta ao Pó (Ahab, 2009) em 1939, Sonhos de Bunker Hill
(Alfaguara, 2014) em 1982 e Estrada para Los Angeles (Alfaguara, 2013) em 1985,
apesar de ter sido este o primeiro a ser escrito em 1933. Cheio de Vida foi
publicado em 1952 e, como disse, afasta-se do Quarteto Bandini assumindo uma
clara componente autobiográfica. A personagem central é o próprio Fante: «Eu,
autor, John Fante, escritor de três livros. O primeiro livro vendeu 2300
exemplares. O segundo livro vendeu 4800 exemplares. O terceiro livro vendeu
2100 exemplares» (p. 11). Fante refere-se a A Primavera Há-de Chegar, Bandini, Pergunta
ao Pó e Dago Red, ainda inédito entre nós. Casado com Joyce, está prestes a ser
pai pela primeira vez. Cheio de Vida é o relato dessa experiência, pulverizado pelas
habituais hesitações do escritor, um retrato cru da instituição familiar, uma perspectiva
ao mesmo tempo desapaixonada, mas algo romântica, da vida com Joyce. Entretanto,
um reencontro com Nicola Fante, pai do escritor, permite identificar uma
sequela geracional que é em si mesma a síntese da filosofia de vida que Fante
tem para oferecer aos seus leitores:
«Dez minutos
depois, vi o menino. Estava nos braços de uma enfermeira que usava máscara. Não
podia tocar nele, pois estavam atrás de uma janela de vidro. Ele estava
contraído e feio como um gnomo mergulhado em gema de ovo. Com bigode, teria
ficado igualzinho ao avô. Deu um guincho quando a enfermeira mo mostrou. Contei
dez dedos nas mãos, dez dedos nos pés e um pénis. Um pai não pode pedir mais do
que isso, sem dúvida. Anuí e a enfermeira tapou o seu corpinho horrível com
cobertores e levou-o para outro sítio da complexa maquinaria do grande
hospital» (p. 153).
Mais cruel no que respeita a reminiscências
familiares, também Charles Bukowski relembra amiúde a relação que tinha com os
pais. Factotum (Alfaguara, Março de 2017) não é excepção: «Lembrei-me de o meu
pai chegar a casa todas as noites e pôr-se a falar do trabalho com a minha mãe.
(…) Não havia outro assunto senão o trabalho» (p. 11). Ironia das ironias, não
há outro assunto em Factotum a não ser as inúmeras ocupações que permitem a
Henry Chinaski ir sobrevivendo nos tempos da II Grande Guerra. Publicado pela
primeira vez em 1975, é o segundo romance de Bukowski. Os leitores portugueses
têm agora acesso, na língua de Camões, a todos os romances escritos pelo
maldito dos malditos norte-americanos. Chinaski salta de Nova Orleães para Los
Angeles, passa por El Paso, vai a Nova Iorque, regressa a Los Angeles, anda por
Filadélfia, St. Louis, Miami, emprega-se a distribuir revistas, num armazém de
peças sobressalentes, na publicidade, numa fábrica de biscoitos de cão, como
funcionário de expedição numa loja de roupa feminina, num armazém de
bicicletas, num outro de peças para carros, numa loja de roupa, numa empresa de
luminárias fluorescentes… De cidade em cidade, aguenta-se tão pouco nos
inúmeros ofícios que vai fingindo que desempenha como com as inúmeras mulheres com que se
vai cruzando. A história de sobrevivência deste assumido falhado é a de alguém sem
outra ambição que não seja a de manter-se vivo, podendo explicar-se com impressionante
capacidade de síntese:
Tocou o
telefone. Tocou várias vezes até que eu conseguisse levantar-me a custo da cama
para ir atender.
—
Senhor Chinaski?
— Sim?
— Fala do Times Building.
— Sim?
— Estivemos a analisar a
sua candidatura e gostaríamos de o contratar.
— Como jornalista?
— Não, como funcionário
de manutenção e empregado de limpeza.
Pelo meio, Chinaski vai escrevendo contos que envia para revistas
sem esperança de vir a ser publicado, ouve Mahler, Beethoven, Brahms, Debussy,
estoura o pouco que ganha no álcool e nas corridas de cavalos. A sua história
não é apenas a de um desafortunado, é a de alguém profundamente des-iludido com
a sociedade em que vive, incapaz de se inserir nesse mesmo contexto social, é a
de alguém que não vê sentido algum numa vida desperdiçada naquilo em que a
maioria de nós investe a sua vida: família, emprego. Neste sentido,
Henry Chinaski podia ser uma antítese de Arturo Bandini, apesar das pontes que
os aproximam e do sentido de humor com que encaram a adversidade. «As pessoas
deprimiam-me», confessa Chinaski logo a abrir a sua narrativa. O mesmo poderíamos
ouvir a Bandini, mas em ambos parece existir uma noção da irrelevância que esta
afirmação tem. Porque ambos sabem que são pessoas, ambos reconhecem-se como tal
e como tal ambos se deprimem de si próprios. John Fante e Charles Bukowski
foram escritores que souberam não se levar demasiado a sério, riram-se de si
próprios tornando-nos a vida, a nós que somos seus leitores, menos onerosa. São
uma fonte de inspiração inesgotável, mesmo não sendo exemplares.
4 comentários:
"foram escritores que souberam não se levar demasiado a sério, riram-se de si próprios tornando-nos a vida, a nós que somos seus leitores, menos onerosa."
Vim aqui só para sublinhar isto a ferro.
Saúde,
Na página 184 após o " Precisa-se de apanhadores de tomate em Bakersfield" 3º parágrafo tem "(...)como nas fotografias tiradas nos anos 90." Como assim fotografias dos anos 90 se o livro foi concluído em 1975? Estou baralhado...
Se calhar no século XIX também houve anos 90.
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