segunda-feira, 20 de março de 2017

ONE NIGHT STAND

Realizei em tempos hercúleos esforços de compreensão, pretendia saber o que está por detrás do pensamento das pessoas para quem a vida dos outros é sempre um problema. Talvez possa explicar-me melhor referindo-me ao ambiente social da terra onde nasci e fui criado nos primeiros 17 anos de vida, anos sufocantes de observação constante, rodeado de medos e de receios, sendo permanentemente julgado por quem, pensava eu, não tinha vida própria para julgar. Por vezes, era levado a pensar que por detrás de quem passava a vida a fazer dos outros um problema… não havia vida alguma. Errado. Há uma vida, uma vida como a de qualquer outra pessoa, motivada, alicerçada, estimulada pela vida dos outros. 
Ora, a vida dos outros pouco me importa. Quero dizer, o modo como a levam. Pouco me importa até constatar que levam a sua vida preocupados com a minha. Bastaria dizer que dispenso tais preocupações, que desobrigo todos de tamanhos cuidados. Se algum dia me virem doente, deixem-me em paz comigo mesmo e com as minhas doenças. É só o que peço. Em vão. Seres existem neste mundo que se alimentam de preocupações, buscam porventura a santidade, acordam e deitam-se a pensar em estratégias para melhorar a vida dos outros. Do meu ponto de vista, têm um problema de fabrico dificilmente reparável. Esse problema reflecte-se em que quase sempre para essas pessoas melhorar a vida dos outros é proporcionar-lhes uma vida como a deles, isto é, padronizando comportamentos, tornando toda a gente cada vez mais igual. Daí que evangelizem. 
Evangelizar significa igualar. Poderia significar qualquer coisa como “criar condições para que o ser de cada um se revele na sua diversidade”. Mas isto é complexo, demasiado complexo. É muito mais simples e eficaz fardar o ser de cada um. O problema está em que quando vestirmos todos a mesma farda, deixará de haver quem precise de nós, deixará de haver quem, no fundo das nossas vontades, necessite de ser apoiado, auxiliado, ajudado pela nossa incomensurável ânsia de caridade. Seria um descanso se partíssemos logo do princípio de que em essência somos todos iguais, até porque somos todos filhos de Deus e à sua maneira e semelhança fomos gerados. Fala um ateu.
Estais recordados, porém, do que foi a discussão acerca da Interrupção Voluntária da Gravidez, de como havia tanta gente preocupada com as gravidezes dos outros, tanta gente emprenhada de preconceitos que pretendiam impor aos outros. Em matéria de eutanásia, coloca-se exactamente o mesmo problema. É uma chatice isto de não nos bastar a vida dos outros, queremos também assaltar-lhes a morte e o sofrimento. O mundo seria mais simples, julgo até que mais saudável, se a cada ser humano fosse dada apenas oportunidade de dizer o que quer para a sua vida, que é sua e de mais ninguém, sem ter de se sujeitar ao julgamento daqueles para quem a sua vida não faz sentido sem aquilo a que chamam, vá lá, aconselhamento sobre a vida dos outros. 
É uma chatice chegar a este ponto tão confuso. A cada qual a sua vida, defendo. Mas e se a vida de alguém for essa coisa de passar o tempo todo a tentar definir a vida dos outros? Deverei eu censurar uma vida assim? Poderei julgá-la? É de facto uma chatice. 
Um exemplo mais simples, ao qual acabei de chegar via Provas de Contacto. Um sítio intitulado datesCatolicos (dC). Temos invariavelmente como fundo um rapaz e uma rapariga, não há dates para rapazes com rapazes ou raparigas com raparigas. Já de si, estabelece-se aqui uma diferenciação de princípio. Para aqueles católicos os dates só fazem sentido no domínio da heterossexualidade. O dC ajuda-nos, que estamos muito precisados, a encontrar uma cara-metade católica, desde que seja do sexo oposto, com simplicidade e diversão, propondo um “teste de combinação de inspiração cristã” onde aqueles que ousam constituir família vislumbraram nos caminhos do Senhor o parceiro ideal para casar e ter filhos (de preferência concebidos imaculadamente). A perspectiva do mundo que defendem: nasces, casas, reproduzes, morres, tudo no seio dessa muralha protectora a que damos o nome de família. 
Como não percebo nada do assunto, mas gosto de literatura, permitam-me que observe a impertinência da citação de Goethe no termo da descrição deste conceito dC. Afinal era o poeta alemão quem também dizia não se admirar de Cristo Nosso Senhor ter gostado de viver com putas e pecadores. Pois se o mesmo se passa comigo! Palavra de Goethe.
Aparte realizado, confesso (o verbo é este) uma certa relutância perante o fenómeno dC. Não restam dúvidas que estamos perante mais uma máquina de fardar corações, sendo que num mundo ideal o que era mesmo bonito era o católico encontrar a muçulmana da sua vida, ou a muçulmana conhecer a judia do seu coração, ou o ateu apaixonar-se profundamente pelo budista dos seus olhos. Enfim, fico na esperança de que a vida dos outros possa simplesmente ser a sua vida, um caminho de autodescoberta sem intermediários para quem pontes significam curvas no sentido de um destino único. Vã é a minha esperança, bem sei. Ninguém desta gente quer saber de ecumenismo para nada.
Há muita gente preocupada com muita gente, sendo que pelo menos metade desta gente toda, de tão preocupada andar com os outros, até se esquece de que tem uma vida própria para viver. Os trilhos da santidade vão dar a isto. E é uma chatice que assim seja. Bom dia:


4 comentários:

Francisco disse...

Olá!

Não achas que Deus virá aqui um dia comentar este teu "post"?


Um abraço

hmbf disse...

Já comentou.

maria disse...

oh, não! desconhecia tal coisa. e vivia bem melhor na ignorância :)

que sejam felizes e nos deixem em paz, como bem dizes.

hmbf disse...

A ignorância, querida amiga, é cada vez mais uma bênção. :-)