Aceitemos a advertência inicial, não como desculpa pelo
desarranjo, seria desnecessária, mas como declaração de princípio. O método é a
ausência de método. Nas palavras de Daniel Jonas (n. 1973), uma escrita
currente calamo, isto é, ao correr da pena, sem cuidar do estilo. Nesse
sentido, Canícula (Língua Morta, Janeiro de 2017) é um livro diferente dos
anteriores livros de Jonas. Se havia marca que o definia era precisamente o
cuidado colocado na arrumação dos versos, a definição de um estilo a partir da recuperação
de formas clássicas como o soneto, assente numa desconstrução sintáctica capaz
de oferecer ao discurso uma musicalidade distinta.
Os poemas de Canícula
surgiram no contexto de uma residência artística, não têm título, são como que
fogachos instantâneos consequentes de uma experiência específica. Paradoxalmente,
raramente estes poemas não induzem uma espécie de encenação. Lisboa é o pano de
fundo num palco que coloca bem no centro a figura do flâneur, aturdido com a balbúrdia
de estímulos que o provocam a ponto de se voltar para si próprio como o caracol
que se protege no interior da concha que carrega pelo mundo.
A imagem da casa é
recorrente ao longo do livro, mais forte nos poemas iniciais. O poeta tenta abandonar a casa e embrenhar-se na cidade. Mas a relação que mantém com o mundo à sua
volta é conflituosa, impele-o a voltar-se para dentro de si próprio: «Eu sou o
que vejo fora de mim. / Eu sou o desejo e para mim / de mim mesmo caminho… / Eu
sou o destino se o destino / não fosse lá no passado… / Eu cá em casa comigo
mesmo. / Eu cá em casa dupla / eu em mim mim em casa / a casa na grande
paisagem de nada / cebola metafísica roca bolbosa / fiando o seu rebobinar de
lágrimas / até ser de novo limpo o nosso passado» (pp. 24-25). Mais à frente,
já num dos poemas finais, esta forma de ensimesmamento repete-se e como que atinge um ponto de saturação: «Eu simpaticamente penso nos outros. / Eu dou-lhes o benefício de os
pensar. / Eu dou-lhes o cumprimento de os olhar. / Eu estendo-lhes a mão do pensamento.
/ Eu sendo o bode afio na barbicha / a fonte de onde o sangue brotará de
fontanário / para dessedentar o turista engalanado de olhos / e jorrar
hemofílico sobre o baile dos vampiros / como uma bomba de água que explodisse na
ciranda dos putos / entontecendo juntos como tribos austrais / na joeira da
cidade estrangulada» (pp. 88-89).
Mais estimulantes são, pois, os momentos
em que o eu parece pretender libertar-se de si próprio, ensaiando uma linguagem
enfática, fortemente imagética, de estilo barroco, expressiva, exclamativa,
transfigurando a realidade com um raro sentido plástico das palavras. De resto,
se nos poemas de Daniel Jonas reconhecemos uma ampla arqueologia da língua
portuguesa, isso deve-se também à desmesura da linguagem que pratica. Abundantes
em jogos fonéticos e polissémicos, por vezes em favor de um sentido de humor
nem sempre conseguido — «Este pato foi-me sacrificado. / Este pato não grasna no
meu prato. / Este pato é arroz com ele. / Este pato é pathos. / Este prato é
uma pena. / Vou dar de comer à dor…» (p. 70) —, os poemas de Canícula
tornam-se bem mais interessantes quando exprimem em imagens deformadas, até
grotescas, a vida urbana, o que resta de vida numa cidade desviada das suas
gentes.
O poema longo que vai da página 44 à página 52 é exemplo do que melhor
encontramos neste livro. O flâneur metamorfoseia-se numa espécie de caracol que
sobe e desce vagarosamente as colinas da cidade, cruzando-se com turistas,
estátuas, «um lagarto radiador de lentura» (p. 45), velhos e velhas, moçoilas,
uma procissão de lojas e construções, para a si mesmo regressar com a
consciência de nunca de si mesmo ter saído. Nas entrelinhas desta noção de um
lirismo tirânico surge, então, a possibilidade demiúrgica da poesia: «Que eu
seja em vez de vós, mediador, / o vosso sítio, o meio de chegardes / a sítio e
já nenhum e todos comigo» (p. 52).
Talvez esteja implícita uma interrogação acerca das possibilidades da poesia enquanto transfiguração do real na perscrutação
do eu lírico aqui levada a cabo, oferecendo Daniel Jonas aos seus poemas a retórica do
delírio enquanto forma do eu e o outro se fundirem num só discurso. Podemos,
desta forma, ler Canícula como um diálogo implícito com os nossos modernistas,
nomeadamente com Álvaro de Campos e certo Almada, na medida em que também neles
a cidade instigava a uma histeria que fortalecia o contraste entre um discurso
intimista e a transgressão desse intimismo a partir da expressão excessiva das
sensações assimiladas na relação com o outro. Fechemos com um poema breve onde
tal contraste parece perceptível:
Eu choro os transístores, a melopeia da cidade.
Exsudo como um boxeur combatendo na sauna
sentado a um canto do gongo
do eléctrico passando a ferro
as rugas de ferro do empedrado
adopto uma política isolacionista
como um códice adormecido numa torre
entretanto amo-te
mas sou tão inútil quanto um bote
engomando o talco do lago
onde patos como chávenas de um serviço
deslizam, planando os silêncios
e a filosofia botânica das coisas.
Vou passando de embaraço em embaraço;
desembocarei nas docas
olhando o meu rosto no espelho
como um epitáfio tipo-passe.
Daniel Jonas, Canícula, Língua Morta, Janeiro de 2017, p.
90.
10 comentários:
"linguagem enfática, fortemente imagética, de estilo barroco, expressiva, exclamativa, transfigurando a realidade com um raro sentido plástico das palavras. "(...) jogos fonéticos e polissémicos (...)"
Com ligeiras alterações utilizaria sensivelmente a mesma catadupa de qualificativos para dizer porque não gosto da poesia do Daniel Jonas. Mas isto de gostos é ao gosto do freguês.
Agora o que eu gosto realmente é da "ampla arqueologia da língua portuguesa," e disso se dever "também à desmesura da linguagem que pratica (tenha lá o sentido que esta segunda asserção tiver...). E constatar com a bonomia possível que o que nuns é anátema noutros é laudatório feitio.
É um sacrifício ler este autor. Estes poemas são uma boa merda. mal empregado tempo dedicado a um artigo que procura "ver" para além do que não existe: boa poesia.
Não é essa a questão, Jorge. Tem que ver com a construção de sentido. Na poesia do Daniel é possível vislumbrá-lo, noutros casos o hermetismo obriga a sacrifícios para os quais nem todos estão dispostos.
Isso é que é profundamente estranho, Henrique, insistir em misturar "rigor" com "hermetismo", quando as duas coisas se encontram em pólos diametralmente opostos. Para mim um poeta é tanto mais hermético quanto mais subjectivo e tanto mais claro quanto mais objectivo. A partir do momento em que detens as chaves de interpretação (e esse sim, será sempre um "esforço" hermenêutico), o discurso de um poeta "rigoroso" abre-se à tua frente com uma clareza a toda a prova.
Construção de sentidos? A construção de sentido faz-se através da interpretação (eu não conheço outra forma pelo menos) e essa será sempre uma tarefa do leitor, que os fixará ou não, muito mais do que do próprio poeta que se "limita" a lançar propostas de sentido.
O que eu estranho é que no caso do Daniel Jonas esse trabalho sobre a construção e desconstrução de sentidos, apoiada também nessa "ampla arqueologia da língua portuguesa" seja, pelo seu cariz eminentemente subjectivo, incensada, enquanto que noutros poetas essa mesma arqueologia da língua portuguesa não seja sequer ampla, mas rotulada de hermética, ainda que essas mesmas palavras (mais ou menos usuais) se finquem com justeza no espaço que ocupam, mesmo quando o contexto possa não ser o mais óbvio nem o seu sentido último o mais imediatamente reconhecível. E isto nada tem a ver com garrulice ou loquacidade surrealista, mas precisamente com essa tentativa de criação de sentidos, da parte do autor e da parte do leitor.
Quando leio um texto, seja ele qual for, procuro encontrar-lhe um sentido. Faço-o através de um esforço de interpretação. Esse sentido pode ser puramente estético, quando o texto se fecha na sugestão de imagens, ou musical, quando a conjugação das palavras impõe um ritmo e uma melodia que te pode agradável ou desagradável. No caso deste livro, como disse, a linguagem atinge um nível de barroquismo algo desmesurado. Foi isso que eu pretendi dizer no meu texto. Portanto, não incenso nada nem ninguém. Também escrevi, e isso parece-me evidente, que os jogos fonéticos e polissémicos surgem por vezes em favor de um sentido de humor nem sempre conseguido. Este não é, de todo, o meu livro preferido do Daniel Jonas. Antes pelo contrário. No entanto, não me demito enquanto leitor, até porque aprecio bastante o trabalho anterior do poeta em causa, de fazer um esforço de interpretação, ou seja, de procurar algum sentido para o objecto em causa. O texto permite-o. Noutros casos, esse esforço é uma luta titânica e algo frustrante dada a inacessibilidade da linguagem praticada.
Correndo o risco de abusar da tua paciência, mas porque creio que discutir estas coisas pode ser interessante (pelo menos para mim é-o, que conheço diferentes perspectivas, confrontando-me com outras aporias que não as que eu próprio tenho enquanto leitor de poesia), transcrevo-te um poema.
E porque realmente me interessa tentar perceber onde é que traças essa linha
pergunto-te: onde é que o teu esforço de interpretação choca de frente com essa "luta titânica e algo frustrante dada a inacessibilidade da linguagem praticada."? Na ontologia proposta? No imaginário convocado? Na questão lexical? Numa suposta fruição estética?
Estar onde a comiseração
se aninha
sobre as lajes da incúria
e alardear com a galhardia
dos cobardes
a longeva noite do indulto.
Saber que nada é sem perdão
sob a alodialidade deste céu,
e parar, mais do que por conivência,
por regozijo, em cada um
dos tugúrios
em que a honra se adjudica
pelo menor lance.
E depois comprazer-me
em fazer de toda esta infâmia
um expediente estilístico.
Olha outro: poeta laxante.
Jorge,
Não me é fácil responder a essas questões. Suponho que estejamos sempre reféns de um olhar subjectivo sobre tudo quanto nos rodeia. No poema que transcreves, agrada-me a musicalidade que detecto na primeira estrofe. As palavras “incúria” e “galhardia” conjugam-se bem, impondo um ritmo à leitura que me é agradável. Já na segunda estrofe não entendo o uso da palavra “alodialidade”. Parece-me estar a mais, o que num poema breve produz quase sempre um efeito mortal. Preferiria, por exemplo,
Saber que nada é sem perdão
sob este céu…
No entanto, o que mais me desagrada no conjunto é o uso de vocabulário com conotações religiosas ao qual sou bastante resistente: comiseração, indulto, perdão… Agrada-me, por outro lado, uma espécie de fúria que o poema expira. Pelo menos é isso que me sugere o desprezo implícito na última estrofe. Mas um poema não é exemplo para uma obra. A essa iremos, com toda a certeza, em breve.
Henrique,
"Alódio" é (pelo menos era aquando da minha formação em História) uma propriedade isenta de encargos senhoriais, sendo que "alodialidade é, naturalmente, a qualidade do que é alodial.
Nos 2 primeiros versos dessa 2.ª estrofe a que aludes há uma apropriação do fenómeno e da mundividência desse tipo de feudo medieval e a sua transposição mítico-cristã para um localizado reino dos céus, também ele aqui entendido como um feudo, um domínio onde o feudatário (Deus) põe e dispõe sem passar cartão a ninguém. O tal "deus ausente" de que fala Levinas, condenando, pela sua própria desresponsabilização, o homem à sua "plena maioridade".
Parece-me que assim que essa ideia da "alodiadidade de um céu" é perfeitamente perceptível, sem a necessidade do recurso à paráfrase ou a uma explicação mais prosaica.
E é precisamente porque ao "Senhor" nada é assacado que o "servo da gleba" se pode permitir tudo, porque é muito longa a noite do perdão, dura desde sempre e para sempre, muita, por causa disso, a comiseração onde assenta a galhardia dos cobardes, muitos os que mais do que por conivência (porque isso ao menos apontaria para uma ética), por regozijo, se demoram em cada um dos tugúrios em que a honra se adjudica pelo menor lance.
Sobre o que dizes (e tens todo o direito de o dizer): "(...) o que mais me desagrada no conjunto é o uso de vocabulário com conotações religiosas ao qual sou bastante resistente: comiseração, indulto, perdão... (...)".
Se algum dia te deres ao trabalho de ler a minha poesia talvez te apercebas que essas e outras palavras como conotação religiosa são sempre utilizadas com o intuito de desconstruir uma ideia de "bem" ou de "justiça" ou de "probidade". Será uma poesia religiosa, porventura, mas é profundamente agónica. Por isso a minha última recolha se chama hybris, bem à sombra de Jacob.
Afinal de contas o que Prometeu roubou aos deuses foi a forma mais particular de conhecimento que existe: a ética. E esse fogo não foi roubado, mas reclamado para o homem como um atributo constituinte e diferenciador.
A um rico mercador não se rouba a pobreza, e deus algum fez alguma vez do escrúpulo um seu apanágio natural, pela simples razão que a probidade se joga entre iguais, e só entre iguais.
Sendo assim a húbris, ainda que seja um desafio, ou, precisamente, por ser um desafio, não pode nunca ser conotada como um anátema e perseguida como uma execração. Ela é antes um caminho para uma ética e em última análise, e por fim, para o livre arbítrio.
Li esta troca de comentários e cheguei a esta conclusão: os poetas farejam-se uns aos outros.
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