Não é que me tenham perguntado, mas se perguntassem a
resposta não podia ser outra. O livro da minha vida é O Papalagui. Ao contrário
de inúmeras pessoas sensatas, para quem a mera ideia de “um livro da vida” se
apresenta como uma monstruosidade, eu borrifo-me para a sensatez com a certeza
absoluta de qual é o livro da minha vida. Não é o livro que mais influenciou a
minha vida, não é o livro que mudou para sempre a minha vida, não é o melhor
livro que li na vida, não é o livro que mais gostei de ler na vida, é o livro
da minha vida. O que é isso do livro da minha vida? Não sei, mas sei que é O
Papalagui. Foi-me oferecido por uma das minhas irmãs quando fiz quinze anos,
com a dedicatória em letra legível que a imagem seguinte muito bem ilustra:
A reflexão então iniciada não poderia ter tido melhor
mestre. Tuiavii, chefe de uma tribo nos mares do sul, andou de viagem pelo
mundo ocidental. Quando regressou à sua tribo, contou o que viu. O alemão Erich
Scheurmann (1878-1957), que, ao que parece, terá escrito propaganda para os
nazis, viajou para Samoa em 1914. Conta, na introdução, que conheceu Tuiavvi na
«longínqua ilhota de Upolu, pertencente ao grupo de Samoa, na aldeia de Tiavéa».
Aí terá recolhido os discursos de Tuiavii à sua tribo, relatos simples,
directos, mas severamente críticos acerca do modo de vida ocidental. Correm
versões de que Scheurmann ter-se-á baseado num livro de Hans Paasche intitulado
The Expedition of the African Lukanga Mukara to the Interior of Germany.
Polémicas afastadas, rasuro os créditos e concentro-me nas palavras. Em suma,
numa letra menos legível do que a da minha irmã:
O Papalagui, ou seja, o homem branco, é dissecado nos discursos
do chefe tribal com base em observações muito simples sobre questões mais
complexas do que aparentam. Logo no discurso inicial, a obsessão com a roupa
vem associada a uma concepção negativa do corpo (prisão da alma para os
clássicos, pecado para os filhos de Cristo). Afirma Tuiavii: «O branco,
crendo-se obrigado a muito cobrir-se para esconder a sua vergonha é parvo, é
cego, é insensível à verdadeira alegria». O modus vivendi no chamado mundo
civilizado fica bem delimitado no título do segundo discurso: «Das arcas de
pedra, das gretas de pedra, das ilhas de pedra e do que entre elas há». Falemos
de casas, diria o poeta. «Resumindo: baús de pedra com os seus muitos homens,
fundas gretas de pedra correndo para um lado e para o outro, quais mil e um
rios, com seres humanos lá dentro, barulho e estrondo, poeira negra e fumo por
toda a parte, árvore alguma no horizonte e nada de céu azul, nada de ar puro ou
de nuvens — a isto chama o Papalagui uma “cidade”, criação de que muito se
orgulha». Estávamos no início do século, o Algarve, por exemplo, ainda não era
o All Garve de que todos nos orgulhamos, com inúmeros hotéis à beira mar plantados
e praias sem areal que chegue para tantos devotos do deus Sol.
Vem-me à memória inesperadamente um professor de
Filosofia que tive no 10.º ano. Questionou se alguém na turma conhecia O
Papalagui. Disse-lhe que sim. Por razões que só ele saberia, duvidou da minha
resposta e tentou pôr-me à prova. Que nome dava o chefe Tuiavii ao dinheiro? Os
nervos tolheram-me o pensamento, não consegui responder. Fiquei traumatizado para
a vida. Quando cheguei a casa, reli todo o capítulo dedicado ao metal redondo e
ao papel forte, sublinhando-o avidamente. Podia ser uma oração. Ainda estou para encontrar definição
mais lógica deste nosso mundo: «Trabalha e terás dinheiro», diz uma lei moral
europeia. E se tiveres muito, poderás ter muitas coisas. Por isso, trabalha
muito. O dinheiro é o teu Deus, por ele sacrificarás riso, honra, consciência,
felicidade, saúde e, se preciso for, até mulher e filhos. O resto é por demais
conhecido. Há dias, ao reparar algures no anúncio de uma agência funerária, foi
disto que me lembrei:
Até para nasceres tens que pagar e quando morreres a tua
aiga (família) tem que pagar pela tua morte, para poder depositar o teu corpo
na terra e pela grande pedra que te põem sobre a tumba, em sinal de recordação.
Estamos de facto na presença de um manual para a vida. Mesmo
tendo em conta as especificidades do livro em causa, dificilmente encontraria
melhor forma de iniciar esse processo de auto-reflexão que me foi instigado e
ao qual recorro em diversas ocasiões num esforço que faço para evitar, tanto
quanto me é possível, a presunção de que o mundo começa e acaba onde os nossos
olhos alcançam. Gostava que as minhas filhas pudessem vir a fazer o mesmo
esforço na sua relação com o mundo. Espero que o façam. Se forem por aqui,
podem estar certas de que lerão um excelente livro, traduzido por uma das mais
relevantes poetas portuguesas de todos os tempos, a Luiza Neto Jorge, publicado
por uma editora que tem sido ao longo dos anos uma inesgotável fonte de aprendizagem,
a Antígona.
8 comentários:
Sensato é saber, sim, escolher um livro em ocasiões destas. Eu sinto-me sempre incapaz de escolhas acertadas. E, sendo de fraca memória, esqueço-me com demasiada facilidade do que leio, o que me faz lembrar que tendo esse mesmo "O Papalagui" na minha estante, talvez esteja na hora de o voltar a ler.
Um dos textos é precisamente sobre essa coisa de andarmos sempre a pensar, perdermos tempo a registar o que pensamos e depois não nos lembrarmos de nada. :-)
Saúde,
O Henrique sempre me pareceu demasiado grave para ter a ligeireza de dar a este livro o título de livro da vida.
Diogo, a gravidade é só mesmo no excesso de peso. :-) Obrigado pelo comentário.
é dos meus primeiros livros sobre perceber o outro. há outro livro muito bom também do mesmo género, mais pequenino: a noite do índio, Discurso do Chefe Seattle.
O livro da minha vida é "As Vinhas da Ira", de Steinbeck. Já há muito detectado. Talvez desde o dia que acabei de o ler.
os motivos valerão um post no meu blog, qualquer hora destas.
Também tenho esse: http://universosdesfeitos-insonia.blogspot.pt/2010/05/noite-do-indio.html
E fico à espera desse post.
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