domingo, 23 de abril de 2017

DIA MUNDIAL DO LIVRO


Não é que me tenham perguntado, mas se perguntassem a resposta não podia ser outra. O livro da minha vida é O Papalagui. Ao contrário de inúmeras pessoas sensatas, para quem a mera ideia de “um livro da vida” se apresenta como uma monstruosidade, eu borrifo-me para a sensatez com a certeza absoluta de qual é o livro da minha vida. Não é o livro que mais influenciou a minha vida, não é o livro que mudou para sempre a minha vida, não é o melhor livro que li na vida, não é o livro que mais gostei de ler na vida, é o livro da minha vida. O que é isso do livro da minha vida? Não sei, mas sei que é O Papalagui. Foi-me oferecido por uma das minhas irmãs quando fiz quinze anos, com a dedicatória em letra legível que a imagem seguinte muito bem ilustra:



A reflexão então iniciada não poderia ter tido melhor mestre. Tuiavii, chefe de uma tribo nos mares do sul, andou de viagem pelo mundo ocidental. Quando regressou à sua tribo, contou o que viu. O alemão Erich Scheurmann (1878-1957), que, ao que parece, terá escrito propaganda para os nazis, viajou para Samoa em 1914. Conta, na introdução, que conheceu Tuiavvi na «longínqua ilhota de Upolu, pertencente ao grupo de Samoa, na aldeia de Tiavéa». Aí terá recolhido os discursos de Tuiavii à sua tribo, relatos simples, directos, mas severamente críticos acerca do modo de vida ocidental. Correm versões de que Scheurmann ter-se-á baseado num livro de Hans Paasche intitulado The Expedition of the African Lukanga Mukara to the Interior of Germany. Polémicas afastadas, rasuro os créditos e concentro-me nas palavras. Em suma, numa letra menos legível do que a da minha irmã:


O Papalagui, ou seja, o homem branco, é dissecado nos discursos do chefe tribal com base em observações muito simples sobre questões mais complexas do que aparentam. Logo no discurso inicial, a obsessão com a roupa vem associada a uma concepção negativa do corpo (prisão da alma para os clássicos, pecado para os filhos de Cristo). Afirma Tuiavii: «O branco, crendo-se obrigado a muito cobrir-se para esconder a sua vergonha é parvo, é cego, é insensível à verdadeira alegria». O modus vivendi no chamado mundo civilizado fica bem delimitado no título do segundo discurso: «Das arcas de pedra, das gretas de pedra, das ilhas de pedra e do que entre elas há». Falemos de casas, diria o poeta. «Resumindo: baús de pedra com os seus muitos homens, fundas gretas de pedra correndo para um lado e para o outro, quais mil e um rios, com seres humanos lá dentro, barulho e estrondo, poeira negra e fumo por toda a parte, árvore alguma no horizonte e nada de céu azul, nada de ar puro ou de nuvens — a isto chama o Papalagui uma “cidade”, criação de que muito se orgulha». Estávamos no início do século, o Algarve, por exemplo, ainda não era o All Garve de que todos nos orgulhamos, com inúmeros hotéis à beira mar plantados e praias sem areal que chegue para tantos devotos do deus Sol.
Vem-me à memória inesperadamente um professor de Filosofia que tive no 10.º ano. Questionou se alguém na turma conhecia O Papalagui. Disse-lhe que sim. Por razões que só ele saberia, duvidou da minha resposta e tentou pôr-me à prova. Que nome dava o chefe Tuiavii ao dinheiro? Os nervos tolheram-me o pensamento, não consegui responder. Fiquei traumatizado para a vida. Quando cheguei a casa, reli todo o capítulo dedicado ao metal redondo e ao papel forte, sublinhando-o avidamente. Podia ser uma oração. Ainda estou para encontrar definição mais lógica deste nosso mundo: «Trabalha e terás dinheiro», diz uma lei moral europeia. E se tiveres muito, poderás ter muitas coisas. Por isso, trabalha muito. O dinheiro é o teu Deus, por ele sacrificarás riso, honra, consciência, felicidade, saúde e, se preciso for, até mulher e filhos. O resto é por demais conhecido. Há dias, ao reparar algures no anúncio de uma agência funerária, foi disto que me lembrei:

Até para nasceres tens que pagar e quando morreres a tua aiga (família) tem que pagar pela tua morte, para poder depositar o teu corpo na terra e pela grande pedra que te põem sobre a tumba, em sinal de recordação.


Estamos de facto na presença de um manual para a vida. Mesmo tendo em conta as especificidades do livro em causa, dificilmente encontraria melhor forma de iniciar esse processo de auto-reflexão que me foi instigado e ao qual recorro em diversas ocasiões num esforço que faço para evitar, tanto quanto me é possível, a presunção de que o mundo começa e acaba onde os nossos olhos alcançam. Gostava que as minhas filhas pudessem vir a fazer o mesmo esforço na sua relação com o mundo. Espero que o façam. Se forem por aqui, podem estar certas de que lerão um excelente livro, traduzido por uma das mais relevantes poetas portuguesas de todos os tempos, a Luiza Neto Jorge, publicado por uma editora que tem sido ao longo dos anos uma inesgotável fonte de aprendizagem, a Antígona. 

8 comentários:

luisa disse...

Sensato é saber, sim, escolher um livro em ocasiões destas. Eu sinto-me sempre incapaz de escolhas acertadas. E, sendo de fraca memória, esqueço-me com demasiada facilidade do que leio, o que me faz lembrar que tendo esse mesmo "O Papalagui" na minha estante, talvez esteja na hora de o voltar a ler.

hmbf disse...

Um dos textos é precisamente sobre essa coisa de andarmos sempre a pensar, perdermos tempo a registar o que pensamos e depois não nos lembrarmos de nada. :-)

Saúde,

Diogo C. disse...

O Henrique sempre me pareceu demasiado grave para ter a ligeireza de dar a este livro o título de livro da vida.

hmbf disse...

Diogo, a gravidade é só mesmo no excesso de peso. :-) Obrigado pelo comentário.

take direto disse...

é dos meus primeiros livros sobre perceber o outro. há outro livro muito bom também do mesmo género, mais pequenino: a noite do índio, Discurso do Chefe Seattle.

take direto disse...

O livro da minha vida é "As Vinhas da Ira", de Steinbeck. Já há muito detectado. Talvez desde o dia que acabei de o ler.
os motivos valerão um post no meu blog, qualquer hora destas.

hmbf disse...

Também tenho esse: http://universosdesfeitos-insonia.blogspot.pt/2010/05/noite-do-indio.html

hmbf disse...

E fico à espera desse post.