Publicada em 2015, a mais recente reunião da poesia de Jorge
Melícias (n. 1970) surge com uma advertência na badana de capa: «Os seis livros
adunados na presente recolha (…) constituem aquilo que o autor considera
relevante fixar como o seu corpus poético». São, como se refere, seis
brevíssimos conjuntos (nunca excedendo a vintena de poemas), organizados entre
2004 e 2015. Manifesta se torna a obsessão do autor por uma arrumação
que impõe ao conjunto da obra cisões, cortes, rasuras, num exercício poético que
podemos caracterizar de rigoroso. Por detrás de tal labor residirá uma intenção
que cabe ao leitor senão descortinar, pelo menos ajudar a construir através do seu
subjectivo esforço hermenêutico.
Os seis conjuntos reunidos sob o título
hybris, organizados do mais recente para o mais antigo, são blocos de um só
edifício, podendo entre eles ser perceptível uma narrativa que coloca os
mecanismos da fé no centro de uma atormentada reflexão no interior do sujeito
poético. No entanto, nenhuma poesia entre nós procura mais a antítese de certa
narratividade poética do que esta. Os próprios poemas de Jorge Melícias reivindicam
para si um carácter fragmentário, aproximando-se do detalhe que
não esgota o conjunto. Lidos isoladamente traem a panorâmica geral,
deixando num vago vazio toda e qualquer hipótese de sentido.
Importa sublinhar, na
esteira do que fez Ruy Ventura na minuciosa leitura final que acompanha esta
edição, que «Jorge Melícias edificou uma estrutura textual de que nunca
poderemos aproximar-nos se não formos capazes de abandonar a acédia, o langor e
a abulia que nos levam à rejeição, contumaz, de tudo quanto se nos afigura
incomum, perturbador ou secreto» (p. 144). Ora, esta estrutura textual de que
fala Ruy Ventura começa por ser dissuasiva na regra de leitura que impõe.
Despreocupada do ritmo, completamente desinteressada do sentido literal do discurso, o tom anticoloquial adoptado é um teste à resistência do
iniciado. Concordamos que seja incomum e que induza certo secretismo, mas não
chega a perturbar.
Antes de mais, há todo um complexo lexical nesta poesia
directamente proveniente da tradição judaico-cristã: culpa, blasfémia, fé,
fiúza, piedade/impiedade, indulto, graça, oblação, penitência, apostasia, abjuração,
liturgia, contrição, orago, anjos, redenção, compaixão, profanar, beatitude,
enfim deus. Sucede que o sujeito poético se coloca no lugar atormentado da
hybris, ou seja, num lugar de desafio à divindade, nesse lugar de provocação à
ordem estabelecida que se traduz no comportamento criminoso que o último verso
do livro tão bem remata: «Chega-se ao crime pelo exercício da evidência» (p. 140).
Por exercício da evidência podemos talvez entender os desígnios da razão,
ligados a um corpo animal que nos separa da ideia de deus e exerce o seu crime
desde a concepção à ânsia de conhecer.
O desejo de conhecimento, mormente
quando assoberbado por uma vontade de alcançar a verdade divina, é o maior dos
crimes cometido pelo sujeito poético, na medida em que este não só aceita para
a palavra poética, como reivindica na sua assumida arrogância, uma manifestação
de verdade. O sujeito encarna, deste modo, o papel do escravo que intenta
libertar-se do senhor, comercializando o próprio corpo num violento processo de
abjuração: «A minha devoção / exige um corpo para profanar. // Que a mesma
cobardia / com que apostemo a inocência / seja no meu dorso / pasto para deus»
(p. 73, do livro felonia, isto é, rebelião do vassalo para com o seu senhor).
Não deixa de ser curioso que esta rebelião se faça acompanhar de um código
tantas vezes próximo da linguagem comercial — «barganha da penúria» (p.
13), «ágio da hipocrisia» (p. 33), «veniaga da súplica» (p. 36) —,
naquilo que parece constituir uma crítica aos negócios da fé que o fragmento da
página 44 tão bem exprime: «Tudo se resume à mercancia / do dolo, / ao desvelo
/ que se concede à onzena / e à simonia. // O denodo / da mentira foi comutado
/ pela solércia / mais rés. // E deus tornou-se uma evasiva / a quem falta a
força / da mendacidade» (p. 44, do livro profligação). Repare-se como a clareza
dos três versos da estrofe final (sublinhado meu) dispensavam a linguagem excessivamente enfatuada
das estrofes precedentes.
Num outro poema, do conjunto intitulado felonia, a
mesma questão é retomada: «É um comércio vesânico, / mas quando a redenção não
se regateia / a usura não atalha. // Nada sei dos mercados / em que se cambiam
oblações / por oragos. // Basto-me do que sou: uma fé / onde nidificam as
deletérias flores / da abjuração» (p. 72). Da incubação à fome, atravessando a
blasfémia e a derrocada, parece estar implícito no sujeito que assim se exprime um violento
processo de libertação, o qual acaba por ser a expressão de um desassossego ontológico
especialmente tocado pelas questões da teologia. Corpo e espírito são ainda
nesta poesia dimensões de uma dinâmica conflituosa interior, a de uma
consciência do horror predominante no mundo dos homens.
Por detrás desta
prática reflexiva vislumbramos uma mente de tipo escolástico que, confessemos, não nos perturba
propriamente. Há muito assumimos dentro de nós a morte do Senhor, daí que estejamos mais empenhados na denúncia dos escravos que não são senão
vítimas de si próprios. hybris [poesia reunida] (Cosmorama, 2015) é, não
obstante, um objecto singular no contexto da poesia portuguesa contemporânea. Afastando-se da narratividade em voga, não deixa, porém, de ser confessional na sua reflexibilidade. Ainda
que não nos toque especialmente, quer pelos temas aprofundados, quer pela
linguagem praticada, seria incorrecto não reconhecer tal singularidade. Bela
capa.
7 comentários:
Há com cada maluco. Maluquice poética. E há quem perca o tempo com isto...
Henrique, hesitei antes de escrever este comentário porque não quero entrar em qualquer tipo de polémica: a tua leitura é a tua leitura e só a ti vincula. A mim cabe estar grato perante o teu esforço (e "esforço" aqui parece-me o termo correcto :)), mas não podia deixar passar esta imprecisão em claro. Até porque creio ser uma imprecisão que muda o sentido todo do verso.
"E deus tornou-se uma evasiva / a quem falta a força / da mendicidade."
Se cotejares com o original verás que não se trata de "mendicidade" (estado ou qualidade de mendigo; acto de mendigar) mas de "mendacidade" (qualidade de mendaz, falsidade). Para mim não faz muito sentido a utilização neste contexto do termo "mendicidade" mas sim de "mendacidade", i.e. deus tornou-se uma desculpa a quem falta até a força da mentira. Se atenderes aos versos logo acima ("O denodo / da mentira foi comutado / pela solércia / mais rés. //) julgo que se te tornará mais perceptível o porquê de ter usado "mendacidade". O ímpeto, o valor, com que os homens um dia poderão ter defendido a mentira (que era então para eles uma verdade inquestionável, em todas as suas formas e expressões), a tal "mercancia do dolo", a tal "onzena", a tal "simonia", foi comutada pela velhacaria mais rasa, pelo oportunismo mais chão.
Estranhei que considerasses esses os 3 versos mais claros de todo o poema, porquanto me parecem os de mais difícil interpretação, precisamente porque poderão ter que pressupor um deslocamento ontológico.
De resto "mercancia do dolo" é "mercancia do dolo", "onzena" é "onzena" e "simonia" é "simonia". Não me parecem que sejam termos "enfatuados" mas apenas o que são, palavras precisas que apontam para conceitos precisos, sobretudo para quem como eu acredita que a poesia não é o campo da paráfrase.
O meu obrigado.
Embora esta poesia me faça sentir reduzida a um insecto, admiro-lhe a coragem. Só através dos extractos seleccionados aprendi cinco palavras que desconhecia e que hei-de esquecer pela força do seu desuso - um esquecimento que, talvez adequadamente, ao menos fica a matar.
É gralha, vou corrigir. As minhas desculpas.
Grande Marina Tadeu. Na mouche.
Sim, terá sido isso. Obrigado pela atenção.
(...) Não me parece[m] que sejam termos "enfatuados" mas apenas o que são, palavras precisas que apontam para conceitos precisos, sobretudo para quem como eu acredita que a poesia não é o campo da paráfrase.😊
Um cibinho excessivo o convencimento do Autor de que as palavras não envelhecem. Mas cada um mendiga como quer ou pode o poema, os poemas,"a obra".
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