sexta-feira, 14 de abril de 2017

O TRAGICÓMICO DESTINO DOS HOMENS

Evito adjectivar o destino de quem quer que seja, muito menos de uma classe. Tomemos de exemplo os escritores, assumindo a influência desta prosa. O que de mais trágico possa haver no destino dos escritores é não serem lidos. Vamos ignorá-lo? Quanto ao mais, estamos no domínio da biografia. E se por detrás de um livro há sempre pelo menos uma biografia, seria desavisado julgar o livro pelo que supomos saber acerca da vida ou das vidas que por detrás dele se esconde ou se escondem. 
Reparei recentemente numas notícias sobre a relação entre Ted Hughes e Sylvia Plath, a que dediquei um poema no meu livro A Dança das Feridas. Poderão ler o poema aqui. Mas que podemos nós saber verdadeiramente sobre aquela relação? Tudo o que viermos a saber será fruto de uma construção subjectiva que pouco tem que ver com as obras por ambos produzidas. Talvez tendamos a simpatizar com Sylvia, antipatizando com Ted. Imagine-se, porém, que Sylvia era obsessiva, manipuladora, paranóica, ciumenta, um inferno de mulher que sufocava Ted, controlando-o, impedindo-o de ser feliz. Acrescentemos à hipótese que terá sido numa dessas ocasiões em que se sentia sufocado que Ted desabafou, esvaído em lágrimas convulsas, o desejo de se ver livre de Sylvia: preferia que morresses. Enfim, são hipóteses a considerar. 
A Sylvia Plath dediquei igualmente um dos poemas em prosa do meu livro Suicidas, começando assim: «Naquele tempo o amor era mais simples». Sim, houve um tempo em que o amor era mais simples. Tal como a vida. Esse tempo perdeu-se. Presumo que seja assim em todas as vidas. 
O que me parece claramente desapropriada é a generalização muito corrente de que a dor e o sofrimento geram as melhores obras. São muitos os escritores que se mataram, certo. Mas são em número infinitamente superior aqueles que não se mataram. Nuns casos e noutros, há obras de interesse muito variável. Também não é certo que todos os escritores suicidas tenham resolvido colocar termo à vida por motivos deprimentes. 
Crente no suicídio feliz, sugeriria que se comparasse esse testemunho pungente de André Gorz em Carta a D com o mais famoso texto de Stig Dagerman: A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer. Encontramos motivações bastante diferentes nos dois textos. Também não fará sentido comparar as decisões de pôr termo à vida de um René Crevel (ver aqui), que se matou aos 34 anos, com as de um Gilles Deleuze, que pôs termo à vida com 70 anos por não suportar mais o cancro que lhe minara os pulmões. No poema em prosa que o evoca no meu livro Suicidas, a frase final é: «Como seria bom, como seria, ter algo pelo que valesse a pena continuar vivo num mundo de mentirosos». Impedido, pela doença, de combater os mentirosos deste mundo, para quê continuar vivo? 
Mesmo nos casos portugueses mais conhecidos, de Mário de Sá-Carneiro a Manuel Laranjeira, de Florbela Espanca a Antero de Quental, de Cristóvam Pavia a Eduardo Guerra Carneiro, de Guilherme de Faria a Camilo Castelo Branco, não é possível traçar um padrão. As obras e os estilos, os tons, são muito dissemelhantes, na sua génese é difícil vislumbrar um denominador comum que permita afirmar uma qualquer estatística puramente especulativa. Há ainda os suicidados da sociedade, como se disse a propósito de Antonin Artaud. Veja-se o caso de Pessoa, um homem comum com um emprego banal. Ou Cesário, Pessanha, etc. 
Associar a criação a tendências patológicas é tão pueril quanto julgar que do consumo de drogas retiramos maior proveito criativo. Os estímulos à criação são os mais diversos. Reduzir o terreno da sua diversidade seria prejudicial à própria criação. Pessoalmente, interessa-me muito mais combater o preconceito da literatura enquanto salvação. Foi por isso que assinei um livro intitulado Suicidas. Em suma, viver não faz bem a ninguém. Mais do que o tabaco, é mesmo a vida quem nos mata.

9 comentários:

xilre disse...

Pelo menos a avaliar pelos estudos que têm sido feitos na área, alguma correlação existe, especialmente no que à poesia concerne (embora saibamos que correlação não é causalidade). Cito James Kaufman, um dos cientistas mais respeitados no campo da criatividade:

«Eastern Europe is a vastly different culture than the United States or the United Kingdom, yet their writers nonetheless displayed the same pattern shown by many earlier studies of American and British writers: poets are more likely to suffer from mental illness than other types of writers. This finding implies that the image of the poet as a depressed or manic figure may be more accurate—and more universal—than poets would like to admit.»

Kaufman, J. C. (2005). The door that leads into madness: Eastern European poets and mental illness. Creativity Research Journal, 17(1), 99-103.

Jorge Muchagato disse...

Gosto muito deste teu texto, Henrique, como de todos, mas naturalmente tocam-me mais uns do que outros; pelo motivo, pela linguagem, por várias razões. A maior parte das pessoas tem medo de falar, provavelmente até de pensar, na morte, na depressão e por fim no suicídio. Na morte, porque alguma vez já a sentiram vizinha, no outro, e porque querem viver; na depressão, porque não compreendem e porque é, invariavelmente, sempre um problema dos "outros"; no suicídio, porque a cultura vigente continua a ser a judaico-cristã, que o condena sob o anátema do pecado. Mas é esse o primeiro problema da existência e de todas as realizações da existência: a morte. É a consciência da morte que nos levanta; e o suicídio acontece quando a morte já ocorreu. A questão fundamental do suicídio é a linguagem.

hmbf disse...

Caro Xilre, em que se baseiam tais estudos? Quem são os poetas sob observação? Parece-me, e digo-o, como é óbvio, sem outro fundamento que não seja o do leitor, que qualquer pessoa que se dedique a uma arte (poesia, pintura, música, dança...) tenderá a ter uma sensibilidade mais permeável às agressões do mundo. Falando de um modo clássico, o militar educa-se para resistir a tais agressões e, se for esse o seu papel, superá-las pela aniquilação. O artista assimila as agressões, transforma-as e exprime-as de um modo singular. Não é um trabalho saudável, convenhamos. Mas, como disse, viver não traz saúde a ninguém. Há tempos vi uma notícia onde se referia que 1 em cada 5 portugueses sofre de perturbações mentais. Será por isso que somos um país de poetas? Não creio que sejamos mais país de poetas do que o Brasil, o Chile, a Argentina, do que os EUA, a França, a Itália, a Inglaterra ou a Irlanda... E estou absolutamente convencido de que essa imagem do poeta como uma figura deprimida ou maníaca é um cliché. Nos arquivos da RTP há um vídeo muito curioso do Vítor Silva Tavares sobre o Pedro Oom que poderia aplicar-se à maioria dos poetas destes mundos, figuras apagadas, discretas, homens sem nenhum recorte especial, biografia sem espectáculo. O resto é fantochada para entreter académicos e justificar preconceitos antigos, nomeadamente o do génio louco. Parvoeira que me irrita como poucas outras.

Jorge Muchagato disse...

... e ocorre-me agora deixar aqui três versos de uma minha incursão poética sem importância nenhuma, «a civilização e o suicídio sob a inteligência do sol» que são uma tradução do que escrevi no comentário anterior e que transcrevo apenas porque até agora não consegui escrever de outro modo:

«a carruagem pára
no ferro do silêncio

e revela: o suicídio ocorre quando a morte já aconteceu e a questão da vida não foi encontrada no seu natural movimento»

Em todo o caso, este teu texto, muito rico em desenvolvimentos, motivou-me com maior urgência a reflectir por escrito estes assuntos.

xilre disse...

Correlação não é causalidade, lá saliento. O tema é delicado, mas não deve ser tabu. Da correlação não advém nenhuma menorização para a poesia nem para os próprios poetas. Eu, que gosto de Borges, não o tenho em menor conta por ler isto: «La muerte, sin duda, me está acechando, para qué tomarme el trabajo. Antes de mi ceguera pensé muchas veces en suicidarme. Ahora ya es un poco tarde… yo creo que ya no necesito suicidarme.» Uns, sob a depressão, terminaram a vida mais cedo, outros, deixaram o tempo tomar o seu curso. Mas a lista dos poetas de que gosto e que sofreram do «mal de viver» (uns suicidas, outros não) é demasiado grande para que não olhe pelo menos para a correlação com interesse: Alejandra Pizarnick, Anne Sexton, Ana Cristina Cesar, Hart Crane, Emily Dickinson, Dylan Thomas, Cesare Pavese, Alfonsina Storni, Ingeborg Bachmann, para além dos nossos, nacionais, bem conhecidos (e mais Pessoa, que se suicidou lentamente, com absinto).

hmbf disse...

Mas isso não é um exclusivo dos poetas, é da vida. Jorge de Sena, Eugénio de Andrade, Sophia, O'Neill, Cesariny, Fernando Assis Pacheco, enfim, tantos e tantos e tantos que não se mataram. Terão sofrido do mal de viver como qualquer pessoa sofre. E na pintura? E no cinema? É exactamente a mesma coisa. Acho que foi Nerval, que também se matou, quem disse que o poeta carrega os males do mundo. É um facto indesmentível. O artista carrega os males do mundo, mas a forma como se desenvencilha desses males é a mais diversa possível. O riso é propulsor de grandes obras, tanto como o desespero. Assim a contemplação, o êxtase. Etc.

xilre disse...

O tema é inesgotável. Mas é evidente que estas correlaçõs não se limitam à poesia:

«scientists (including mathematicians) scored significantly higher than both humanities and social sciences students, confirming an earlier study that autistic conditions are associated with scientific skills» é afirmado em
Baron-Cohen, Simon, Sally Wheelwright, Richard Skinner, Joanne Martin, and Emma Clubley. "The autism-spectrum quotient (AQ): Evidence from asperger syndrome/high-functioning autism, malesand females, scientists and mathematicians." Journal of autism and developmental disorders 31, no. 1 (2001): 5-17.

Podem ser também vistas noutras áreas, com outras patologias:
«Recent examples of corporate wrongdoing committed in the oil, automobile, and financial industries presented in Part 2 illustrate recent behaviors of corporations that are consistent with psychopathy.»
Em Pardue, Angela Dawn, Matthew B. Robinson, and Bruce A. Arrigo. "Psychopathy and corporate crime: a preliminary examination, Part 1." Journal of Forensic Psychology Practice 13, no. 2 (2013): 116-144.

Os poetas são sujeitos a depressões, os matemáticos sujeitos a alguma forma de autismo e os CEO de grandes empresas, psicopatas? Contradirão estes estudos a nossa intuição e experiência do mundo? Não tenho a certeza, francamente.

hmbf disse...

Em suma, um mundo de gente doente. Presumo que os futebolistas sejam os mais saudáveis. :-)

hmbf disse...

E os investigadores que estudam estas coisas, estarão sujeitos a que maleita?