segunda-feira, 1 de maio de 2017

A FOME

Não é fácil encontrar nos anais da literatura portuguesa algumas linhas dedicadas ao sacerdote António Cordeiro (1641-1722), autor de uma História Insulana datada de 1717. É Amândio Augusto Coxito quem nos informa, numa entrada da Logos — Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, ter este professor jesuíta ficado como «exemplo de inconformismo perante as ideias estabelecidas». Nascido em Angra, partiu para Lisboa com quinze anos de idade. O resto faz parte de uma aventura de vida que não cabe aqui explorar. Se a ele nos referimos é porque José Martins Garcia (1941-2002) o recuperou para o seu romance A Fome (Companhia das Ilhas, Maio de 2016), publicado originalmente em 1977 pelas Edições Afrodite, com ele estabelecendo uma espécie de paralelismo transtemporal sobre a solitária condição dos povos insulares. Também Garcia se deslocou com apenas quinze anos de idade para Lisboa, aí acabando por se licenciar em Filologia Românica. A infância passou-a na ilha do Pico, dela guardando uma «saudade amarga» envolta em brumas de religiosidade renegada e fantasias travadas pelo realismo da miséria: «Reescrevo esta condição — a que os eruditos chamam insularidade — na memória da escassa vaga que me alimentou a infância entristecida e esperançada por esse gesto de apanhar na minha mão sem idade uma porção de espuma, sabendo-a da mesma natural bondade daquela água salgada com que meus avós cozeram o dentabrum, soca na linguagem de quem não frequentou seminário, lenda da bruma da minha caligrafia obstinada» (p. 26). 
No romance A Fome como que nos é oferecido um olhar sobre esses tempos da infância resumida a capítulo inicial, seguido de outros quatro que percorrem a deslocação lisboeta, passando pela "desventurada" vida de estudante até à mobilização para a Guiné, experiência de guerra colonial retratada num extraordinário romance de estreia intitulado Lugar de Massacre (Afrodite, 1975). Há, pois, um indisfarçável nexo biográfico que nos acompanha do embarque no Carvalho Araújo, no Outono de 1956, até à mobilização para a Guiné em meados da década de 1960. Mas mais do que relato autobiográfico, este livro é um impiedoso retrato, muito à maneira de José Martins Garcia, do ambiente social português vivido nesses anos por um membro da classe dos “portugueses de segunda”. Assim sendo, a fome aqui perscrutada é tanto física quanto moral, é uma fome de viver traída a priori, como se nos afigura quando o herói da narrativa parte para Lisboa a sonhar com Nova Iorque. 
Esta condição açoriana da fuga, perseguida por uma religiosidade lendária e delimitada por delírios sentimentais sobre vidas de sonho, as de quantos partiram para um mundo melhor, começa a desfazer-se ainda a bordo do Carvalho Araújo, quando se torna evidente a miséria humana ali dividida por classes apenas ultrapassadas quando a todos toca a força do vómito provocado pela náusea. E é então que, fumando para enganar a fome, o nosso jovem, atracado em São Miguel, confessa: «Sabia que Antero de Quental se havia suicidado ali perto. Não soube exactamente onde. Sentia-me num país estrangeiro» (p. 54). Antero, o poeta suicida de todas as desilusões, será neste livro a figura icástica de uma nação (então o era, pelo menos em papel) desmoronando-se, enquanto o povo assiste à derribação de costas voltadas para si mesmo, procurando fintar o desamparo e a indigência delatando-se, traindo-se, explorando-se, vigarizando-se. 
Lisboa, capital de um país onde «os explorados exploram os explorados» (p. 77), aparece assim desenhada como um antro de privação física e moral onde, por ironia, só mesmo as putas ou o suicídio podem livrar um jovem de perenes e insuportáveis tormentos: «Sentei-me num café imundo, um daqueles covis que, por esses anos, pululavam na estrumeira lisboeta. Havia espelhos profusos, velhinhos deitando contas a um resto de tarde, prostitutas em começo de faina, empregados orgulhosos como lacaios, cauteleiros, engraxadores e seres de sexo duvidoso. O país dos delatores, miseráveis informadores políticos e quejandos, agredia-me a velha e filosofante atenção, quase despegada, na véspera, do fedor circundante, por uma geometria toda íntima, consequentemente sonho, espaço, forma, lira, morte adiada e prole assassinada antes de, assassina, me cravar no sexo, como se de um mamilo se tratasse, aquele amplexo sugador e venenoso que os meus desesperados compatriotas, os ilhéus, saldavam a estricnina ou corda de forca» (p. 142). Apesar de tudo, que é muito, esses são também tempos de fúria, uma fúria de viver contida pela realidade, tempos de consciencialização política (ou desconsciencialização), tempos de autodescoberta, tempos de afronta e de paixões reprimidas por ruas impossíveis de atravessar. O outro lado da rua é sempre de uma distância incomensurável. 
A linguagem, ainda que poética, não engana o naturalismo da expressão: «Lisboa era-me então uma colmeia bêbada e o halo das suas noites, mistura de álcool, perfume e esperma, fazia-me ranger os dentes na espera da guerra civil» (p. 113). Raivas contidas geram textos explosivos. Assim sucede com este A Fome, onde a própria existência doméstica é um drama sentimental de misérias, abortos clandestinos, violência, incestos calados. Enfim o Portugal, a tal nação, que todos sabíamos (sabemos?), mas poucos se dão ao esforço de denunciar com a acutilância e a franqueza que vislumbramos neste livro. Surpreendentes são igualmente as cenas de uma sexualidade violenta, como que último reduto de frustrações que o sono não apaga. Fome e frio aumentam a gula do sexo, mais como escape à solidão do que necessidade de amor. Como conclusão retém-se um profundo desprezo pelas filosofias que sustentaram, durante décadas intermináveis, um “tempo sem perdão” de que, feitas as contas, ainda somos todos vítimas. Porque há sujidades que não se apagam, entranham-se na consciência colectiva como certas impurezas na pele:


   Procuro-me nos gestos de cada fim de tarde e reencontro, na pressa da memória, os sinais duma fuga impossível. Dona Fernanda espreita o meu regresso, anda de unhas aberrantemente pintadas e fez desaparecer do cabelo escuro as incómodas brancas. Dispo a farda, mas preferiria despir a pele. Meu destino sórdido e errante é ser vigiado durante o sono, no banho, na sentina, por um globo ocular feminino. Eu a mosca, a mulher a aranha. Dispo a farda, tiro a roupa interior, passo ilusoriamente à condição civil, nem os sapatos conservo. Torno a barbear-me para afastar do rosto algum bacilo de quartel. Torno a esfregar os dentes, para safar do hálito algum cheiro a pólvora. Esfrego as unhas, esfrego a pele, esfrego-me raivosamente, sob um dilúvio frio, shampoo, sabonete, desodorizante, loções. Camisa lavada, cuecas lavadas, peúgas lavadas, tudo lavado. E continuo sujo, absurda e perfeitamente sujo. Cinco minutos da casa ao barco. Dona Fernanda mete-se na casa de banho. Aposto que procura sob o duche um resto de mim

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