Não é fácil encontrar nos anais da literatura portuguesa
algumas linhas dedicadas ao sacerdote António Cordeiro (1641-1722), autor de
uma História Insulana datada de 1717. É Amândio Augusto Coxito quem nos
informa, numa entrada da Logos — Enciclopédia Luso-Brasileira de
Filosofia, ter este professor jesuíta ficado como «exemplo de inconformismo
perante as ideias estabelecidas». Nascido em Angra, partiu para Lisboa com
quinze anos de idade. O resto faz parte de uma aventura de vida que não cabe
aqui explorar. Se a ele nos referimos é porque José Martins Garcia (1941-2002)
o recuperou para o seu romance A Fome (Companhia das Ilhas, Maio de 2016), publicado
originalmente em 1977 pelas Edições Afrodite, com ele estabelecendo uma espécie
de paralelismo transtemporal sobre a solitária condição dos povos insulares.
Também Garcia se deslocou com apenas quinze anos de idade para Lisboa, aí
acabando por se licenciar em Filologia Românica. A infância passou-a na ilha do
Pico, dela guardando uma «saudade amarga» envolta em brumas de religiosidade
renegada e fantasias travadas pelo realismo da miséria: «Reescrevo esta
condição —
a que os eruditos chamam insularidade — na memória da escassa vaga que me
alimentou a infância entristecida e esperançada por esse gesto de apanhar na
minha mão sem idade uma porção de espuma, sabendo-a da mesma natural bondade
daquela água salgada com que meus avós cozeram o dentabrum, soca na linguagem
de quem não frequentou seminário, lenda da bruma da minha caligrafia obstinada»
(p. 26).
No romance A Fome como que nos é oferecido um olhar sobre esses tempos da
infância resumida a capítulo inicial, seguido de outros quatro que percorrem a
deslocação lisboeta, passando pela "desventurada" vida de estudante até à
mobilização para a Guiné, experiência de guerra colonial retratada num
extraordinário romance de estreia intitulado Lugar de Massacre (Afrodite, 1975).
Há, pois, um indisfarçável nexo biográfico que nos acompanha do embarque no
Carvalho Araújo, no Outono de 1956, até à mobilização para a Guiné em meados da
década de 1960. Mas mais do que relato autobiográfico, este livro é um
impiedoso retrato, muito à maneira de José Martins Garcia, do ambiente social
português vivido nesses anos por um membro da classe dos “portugueses de
segunda”. Assim sendo, a fome aqui perscrutada é tanto física quanto moral, é
uma fome de viver traída a priori, como se nos afigura quando o herói da narrativa parte para Lisboa a
sonhar com Nova Iorque.
Esta condição açoriana da fuga, perseguida por uma
religiosidade lendária e delimitada por delírios sentimentais sobre vidas de
sonho, as de quantos partiram para um mundo melhor, começa a desfazer-se ainda
a bordo do Carvalho Araújo, quando se torna evidente a miséria humana ali
dividida por classes apenas ultrapassadas quando a todos toca a força do vómito
provocado pela náusea. E é então que, fumando para enganar a fome, o nosso
jovem, atracado em São Miguel, confessa: «Sabia que Antero de Quental se havia
suicidado ali perto. Não soube exactamente onde. Sentia-me num país estrangeiro»
(p. 54). Antero, o poeta suicida de todas as desilusões, será neste livro a
figura icástica de uma nação (então o era, pelo menos em papel) desmoronando-se,
enquanto o povo assiste à derribação de costas voltadas para si mesmo,
procurando fintar o desamparo e a indigência delatando-se, traindo-se,
explorando-se, vigarizando-se.
Lisboa, capital de um país onde «os explorados
exploram os explorados» (p. 77), aparece assim desenhada como um antro de privação
física e moral onde, por ironia, só mesmo as putas ou o suicídio podem livrar
um jovem de perenes e insuportáveis tormentos: «Sentei-me num café imundo, um
daqueles covis que, por esses anos, pululavam na estrumeira lisboeta. Havia
espelhos profusos, velhinhos deitando contas a um resto de tarde, prostitutas
em começo de faina, empregados orgulhosos como lacaios, cauteleiros,
engraxadores e seres de sexo duvidoso. O país dos delatores, miseráveis
informadores políticos e quejandos, agredia-me a velha e filosofante atenção,
quase despegada, na véspera, do fedor circundante, por uma geometria toda
íntima, consequentemente sonho, espaço, forma, lira, morte adiada e prole
assassinada antes de, assassina, me cravar no sexo, como se de um mamilo se
tratasse, aquele amplexo sugador e venenoso que os meus desesperados
compatriotas, os ilhéus, saldavam a estricnina ou corda de forca» (p. 142). Apesar
de tudo, que é muito, esses são também tempos de fúria, uma fúria de viver
contida pela realidade, tempos de consciencialização política (ou desconsciencialização),
tempos de autodescoberta, tempos de afronta e de paixões reprimidas por ruas
impossíveis de atravessar. O outro lado da rua é sempre de uma distância
incomensurável.
A linguagem, ainda que poética, não engana o naturalismo da
expressão: «Lisboa era-me então uma colmeia bêbada e o halo das suas noites,
mistura de álcool, perfume e esperma, fazia-me ranger os dentes na espera da
guerra civil» (p. 113). Raivas contidas geram textos explosivos. Assim sucede
com este A Fome, onde a própria existência doméstica é um drama sentimental de
misérias, abortos clandestinos, violência, incestos calados. Enfim o Portugal,
a tal nação, que todos sabíamos (sabemos?), mas poucos se dão ao esforço de denunciar
com a acutilância e a franqueza que vislumbramos neste livro. Surpreendentes
são igualmente as cenas de uma sexualidade violenta, como que último reduto de
frustrações que o sono não apaga. Fome e frio aumentam a gula do sexo, mais como
escape à solidão do que necessidade de amor. Como conclusão retém-se um
profundo desprezo pelas filosofias que sustentaram, durante décadas
intermináveis, um “tempo sem perdão” de que, feitas as contas, ainda somos
todos vítimas. Porque há sujidades que não se apagam, entranham-se na consciência
colectiva como certas impurezas na pele:
Procuro-me nos
gestos de cada fim de tarde e reencontro, na pressa da memória, os sinais duma
fuga impossível. Dona Fernanda espreita o meu regresso, anda de unhas
aberrantemente pintadas e fez desaparecer do cabelo escuro as incómodas
brancas. Dispo a farda, mas preferiria despir a pele. Meu destino sórdido e
errante é ser vigiado durante o sono, no banho, na sentina, por um globo ocular
feminino. Eu a mosca, a mulher a aranha. Dispo a farda, tiro a roupa interior,
passo ilusoriamente à condição civil, nem os sapatos conservo. Torno a
barbear-me para afastar do rosto algum bacilo de quartel. Torno a esfregar os
dentes, para safar do hálito algum cheiro a pólvora. Esfrego as unhas, esfrego
a pele, esfrego-me raivosamente, sob um dilúvio frio, shampoo, sabonete,
desodorizante, loções. Camisa lavada, cuecas lavadas, peúgas lavadas, tudo
lavado. E continuo sujo, absurda e perfeitamente sujo. Cinco minutos da casa ao
barco. Dona Fernanda mete-se na casa de banho. Aposto que procura sob o duche um
resto de mim.
Sem comentários:
Enviar um comentário