Sou acusado de fundamentalismo por não pactuar com o
circo montado em torno do centenário das aparições de Fátima, celebração de um
logro por de mais desmontado e desmentido, uma patranha para ludibriar pessoas
de fé. Não ando a apedrejar peregrinos nem os atropelo quando os vejo na berma
da estrada, mas não esperem de mim que sinta a mínima simpatia pelos sacrifícios
a que se propõem - quase sempre em troca de intervenções divinas para males
pessoais.
Fátima é um negócio que reduz a Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR)
às práticas tão censuradas da Igreja Universal do Reino de Deus, com a
diferença de que o negócio da ICAR é bem mais universalista e poderoso. O que
se passa no santuário é do domínio da pornografia religiosa, nada tem que ver
com a mensagem discutível, mas autêntica, do Cristo que expulsou vendilhões do
templo.
Sou censurado por me indignar contra isto como se ao indignar-me contra
isto desrespeitasse a fé dos peregrinos, tendo a minha indignação, no seu
íntimo, exactamente a intenção oposta. Caminhar faz bem, peregrinar é outra
coisa —
altamente criticável se motivado por uma fé milagreira.
Que a imprensa se
arraste de joelhos atrás disto, promovendo e exibindo o espectáculo sem critério
que não seja o do puro sensacionalismo, que políticos da República laica se deixem também arrastar pela onda de populismo, são efeitos mais que previsíveis neste mundo
em que tudo vale para se estar na crista das audiências. Tudo isto faz parte de
um ambiente geral de alienação que só me deixa atónito com as contradições
insanáveis do regime em que vivemos.
Como convencer as pessoas dos benefícios
da vacinação quando depois somos tão negligentes em matéria de racionalidade?
Como esperar das populações progressos críticos e intelectuais quando depois
aceitamos ser cúmplices deste medievalismo cultural? Como fugir ao sensacionalismo
e à pornografia mediáticos quando depois nos instalamos pacificamente no meio do
espectáculo com os braços cruzados? É
impossível ficar indiferente a tudo isto. No limite da indiferença surge a inevitabilidade
do nojo.
5 comentários:
Subscrevo na íntegra o teu texto, mas o que é que queres dizer com "mensagem discutível, mas autêntica, do Cristo que expulsou vendilhões do templo."?
Que a mensagem é apócrifa? que o próprio autor da mensagem poderá nunca ter existido? E depois "autêntica" porquê? Porque aí vai de encontro aos teus próprios padrões éticos, como vai de encontro à reinterpretação analítica e antropológica da fé cristã, à luz de Marx, proposta pela Teologia da Libertação, por exemplo?
Apesar de Flávio Josefo e Tácito e Suetónio e o seu "Cresto" e mais uns quantos as minhas dúvidas perante a real existência do Jesus dos evangelhos não são muito menores que as tuas, mas dando isso de barato, e pegando num livro de referência para ti: as observações do chefe tuiavii seriam mais "discutíveis" ou "autênticas" se este chefe nunca as tivesse proferido, ou sequer tivesse existido? E se a própria ilha de Upolu não existisse não seria legítimo transferir este discurso para a vizinha Savai'i? E se tudo tivesse partido (por muito pouco plausível que tal possa parecer) unicamente da mente inspirada e acutilante de Scheurmann, a perplexidade que acredito ser comum a muitos povos "primitivos" (e põe aspas neste primitivo) perante o absurdo da vida moderna do papalagui, e até a muitos modernos papalagui, perante o absurdo da sua própria condição, não estaria aí fixada de uma forma indiscutível e autêntica?
É-nos a maravilhosa loucura de Dom Quixote mais distante porque sabemos que saiu da pena de Cervantes?
Refiro-me ao exemplo do Cristo humano, à autenticidade da sua mensagem. Quando estudei cristologia havia uma interpretação da figura de Jesus que não me repugnava, uma interpretação que o humanizava e o compreendia como hoje compreendemos algumas figuras revolucionárias da História: de Sócrates a Gandhi, de Gerónimo a Mandela, de Túpac Anaru II a Zumbi, de Diógenes de Sinope a Che. A autenticidade do exemplo é o que me importa, mesmo prevenido quanto a eventuais "efabulações" em torno de feitos improváveis. Na mitologia encontramos exemplos de uma autenticidade empolgante, como Antígona e Prometeu. Não confundo o autêntico com o provável, não o reduzo, como alguns epistemólogos pretendiam, ao verosímil. O grau de autenticidade de um exemplo, para mim, está na força do(s) valor(es) que inspira. O Jesus que ressuscitava mortos é-me inautêntico, mesmo atendendo à dimensão alegórica do texto, mas o que expulsa do templo os vendilhões é autêntico, tal como aquele que perante a iminente lapidação da meretriz afirma: quem nunca pecou, atire a primeira pedra. Esse é autêntico.
É precisamente esse cristo humano, tão brilhantemente imaginado por Kazantzákis, que me fascina. Mas ao contrário de ti, creio, também me intriga a cisão (que na doutrina cristológica está definitivamente resolvida, creio que mal como com quase tudo o que é definitivo, com cristo a ser completamente homem e completamente deus e consubstancial ao pai) entre esse cristo-homem e um hipotético cristo-deus.
Orígenes e Arius de Alexandria e a Patrística desses primeiros séculos da era cristã sobre esse e outros se debruçaram, e que tempos fascinantes devem esses ter sido, onde o conceito de deus estava aberto a todo o tipo de heresias, onde o arquétipo era muitas vezes entendido como um entrave ao pensamento e onde onde em cada ser pensante havia rudimentos de dissensão, com pessoal a ser excomungado e depois reabilitado em concílios que se sucediam a um ritmo alucinante. Depois a fixação do "dogma" tratou de tirar a piada toda à coisa.
Mas entendo o que dizes, sobretudo quando colocas as coisas com esta clareza: "O grau de autenticidade de um exemplo, para mim, está na força do(s) valor(es) que inspira.".
..."desmontado e desmentido, uma patranha para ludibriar pessoas de fé".
Podia explicar pf. Obrigado
..."desmontado e desmentido, uma patranha para ludibriar pessoas de fé".
Podia explicar pf. Obrigado
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