sábado, 13 de maio de 2017

I - COMPANHIA


1.

   Um homem tão frágil quanto uma flor. Profissão: tudo o que convier no momento, quando precisa de conversar. Coxeia de mesa em mesa, aproxima-se dos outros com cuidado, chupa cego pedacinhos de nada que lhe atiram, vai pedinchando a esmola da atenção, com o olhar fere o sorriso ainda plano das crianças

   a correria ruidosa em volta do seu lugar — amarra-lhe o corpo, o disparo na respiração limpa de uma das crianças, marca-a com o dedo, a sedução em silêncio —

   retomam o riso, a respiração ofegante, a correria. Procura nos bolsos. Uma sede que lhe torce a língua, come-lhe o estômago, fede à distância, dá-lhe náuseas
   Regresso ao escuro.

*

   Tão frágil quanto uma flor. Como pegar nela, espremer o seu nervo escanzelado de vida, golpe azul que se deita espesso até ao fundo pela palma da mão —
   dedos caridosos salpicam o derrame lento sobre o focinho do artista, dão-lhe a provar o cúmulo negro das unhas — dá voltas sobre a sua sombra, não consegue lamber — nenhuma palavra, nenhum fôlego, gane alto sem vergonha — de nada lhe servirá a vontade de falar

*

   Frágil como uma flor. Mudá-la de sítio —
   passa inclinado, despercebido, vaidoso nas suas pétalas rasgadas, a boca espera numa vontade de chuva, não se ouve — entra o sol, extingue o seu círculo branco de pétalas, desce certeiro até às raízes
   — vê, estão podres.


Frederico Pedreira (n. 1983), in O Artista Está Sozinho (2013). Estreou-se com um volume de poemas intitulado Breve Passagem pelo Fogo (2011), denotando logo aí uma tendência narrativa que volumes posteriores consolidaram. Ensaísta e contista, Frederico Pedreira é doutorando em Teoria da Literatura. À formação académica responde com textos por vezes fragmentários e assumidamente inóspitos, mal-educados. Da sua poesia retemos uma vivência atribulada que coloca a personagem algo dúbia do artista/poeta/escritor num lugar de desentendimento com o mundo, desacordo transfigurado por um discurso elíptico, parcelar, num ritmo aos solavancos por vezes difícil de acompanhar. Oscilações de humor oferecem-lhe um tom emocional inquieto, adquirindo o texto amiúde a forma catártica de um intimismo destroçado.  

1 comentário:

Anónimo disse...

Porra... que pedregulho.
J