— Nós outros —
Na nossa vida nunca nada esteve certo.
Certo como destinado a nós próprios.
Nada na nossa vida se consumou profundamente.
O triunfo, a perfeição,
Não, não, isso não nos é concedido.
Mas agarrar nas mãos o vazio,
Caçar a lebre, deparar com o urso,
Corajosamente atacar o urso, tocar no rinoceronte.
Ficar despido de tudo, suando o seu próprio coração.
Atirados para o deserto, obrigados a refazer o rebanho,
Um osso aqui, um dente acolá, um corno além.
Isto sim, isto é nosso.
Dizer que nascem neste momento as sete vacas gordas.
Nascem, mas não somos nós quem as há-de ordenhar.
Acabaram de nascer os quatro cavalos alados.
Nasceram. Só pensam em voar.
É difícil refreá-los. Irão quase até aos astros, estes cavalos alados.
Mas não somos nós quem os cavalgará.
Caminhos de toupeira, isso é nosso, caminhos de ralo.
Chegámos às portas da Cidade.
Da Cidade-que-interessa.
Não há dúvida, cá estamos. É ela. É mesmo ela.
Quanto penámos para chegar... para partir.
Arrancar-se lentamente, clandestinamente, arrancar os braços que ficaram lá atrás...
Mas não seremos nós quem há-de entrar.
Serão jovens com muita pinta, jovens muito jovens, muito violentos, muito orgulhosos, sim, esses é que hão-de entrar.
Mas nós, não, nós não entraremos.
Não passaremos daqui. Stop. Nem mais um passo.
Entrar, cantar, triunfar, não, não, isso não é nosso.
Henri Michaux (n. 24 de Maio de 1899, Namur, Bélgica - m. 19 de Outubro de 1984, Paris, França), in Doze Nós Numa Corda - Poemas Mudados Para Português por Herberto Helder, Assírio & Alvim, Dezembro de 1997, pp. 129-130. Nota: do nada, pediram-me que explicasse quem foi Michaux. Preenchi o vazio com meia dúzia de banalidades, que nasceu belga, viajou muito, pintou, consumiu drogas com intuitos criativos. Podia ter sido padre, mas acabou a coleccionar caligrafias. Quem foi Henri Michaux? Responda quem souber.
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